Dilemas do Acolhimento: Quando as Pessoas se Transformam em Cores

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Nomear as coisas usando cores! A arte e a literatura fazem isso o tempo todo. No campo das metáforas é uma coisa linda. Por exemplo, Gilberto Gil nos remete às cores como sentido que marca nossas vidas refletindo sobre a existência:

 

Cores vivas
Eu penso em nós
Pobres mortais
Quantos verões
Verão nossos
Olhares fãs
Fãs desses céus
Tão azuis

 

Vinícius nos avisa em Aquarela que a vida é semelhante a um quadro que, com o tempo, vai perdendo`a vivacidade das cores. Aqui as cores nos convidam a recobrar a imaginação da criança ao ver no pingo azul do papel o revoar de uma gaivota. Mas o que aguarda no futuro? Não sabemos. Embora a vida seja uma espaçonave que tentamos pilotar, a única certeza que temos é que tudo termina pois as cores vão se desbotando!

 

Em "Trem das Cores" Caetano Veloso nos embriaga o olhar na profusão de metáforas a partir do prata, do amarelo e, até em coisas absolutamente singelas como a zul do papel que envolve a maçã, é possível encontrar poesia. Os lábios cor de açai atiçam nossa imaginação…quem sabe um beijo com gosto de fruta? Quem sabe as cores tem gosto? Tudo terminando no azul que é pura memória de algum lugar!

 

Pensar em cores atiça a poesia. O problema é que a reaiidade pode ser, digamos, menos colorida que a poesia. As cores podem ser elementos que ao invés de enriquecer o humano, contraditoriamente, acabam por afirmar o seu contrário !

 

Nos últimos anos a PNH tem ampliado e diversificado seus processos. Por onde passo percebo que a Política gerou traços de uma cultura. Na disputa de sentidos sobre o que é humanizar as práticas de saúde, temos afirmado princípios e diretrizes que vão criando alguma raiz nos corações e mentes.

 

Ainda assim, isso tem seu preço na medida em que as pessoas se apossam de símbolos e significados oferecendo um novo sentido que atenda a este ou aquele interesse, Lembro-me certa vez de chegar a um hospital com péssimas condições de acolhimento onde vi o símbolo do HumanizaSUS, nossa simpatica e sorridente cruz verde, colocada acima de uma mesa de triagem com um cartaz logo abaixo dizendo que ali era feito acolhimento com classificação de risco a partir dos princípios da PNH.

 

Nada para se desesperar pois os símbolos acabam meio que servindo para busca de legitimação e não existe necessariamente má intenção quando isso acontece. Mas, em algumas circunstâncias, percebo uma certa quebra que me deixa muito preocupado.

 

A expressão "Acolhimento Com Classificação de Risco" sintetiza uma relação  que deveria ser orgânica, ou seja, "Acolhimento" enquanto um princípio, arraigado às práticas micro e macrossociais em saúde e a "Classificação de Risco" enquanto uma tecnologia que revoluciona os processos de trabalho estruturados a partir das necessidades de saúde e não determinados pelas instâncias normativas e burocráticas dos serviços.

 

Dessa forma, o "Acolhimento" oferece um sentido psicossocial à "Classficação de Risco" na medida em que as demandas de saúde são ordenadas em função da vulnerabilidade das pessoas que, dessa forma, são melhor acolhidas. É comos se o princípio da equidade se materializasse diante de nós.

 

Mas algo vai errado quando as pessoas se transfromam em "amarelos", "azuis" ou "vermelhos". Não acolhemos cores, acolhemos pessoas em sofrimento, que precisam de respostas, que necessitam de atendimento humano e resolutivo, que precisam ser ouvidas. Quando a fala de trabalhadores nas rodas ou informalmente começa a reduzir esse conjunto complexo e diverso que expressa o humano em sistemáticas de cores, significa dizer que talvez o acolhimento ainda não seja vivenciado como um princípio e que os riscos enquanto expressão da vulnerabilidade humana estejam abstratamente transformados em cores.

 

Aqui acaba toda a poesia. Perdem-se nomes, especificidades, singularidades. Tudo fica reduzido a cores…frias…distantes…desumanas! Acolher e classificar Riscos formam uma unidade. Não ordenar as filas em função da vulnerabilidade compromete o acolher. Produzir ordenamentos sem perceber as singularidades não é acolhimento!