Pequenas Grandes Reflexões para uma Moção de Aplausos- Democracia e Política, Poder Público e Diálogo com a Cultura

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Senhores(as) deem-nos licença. Trazemos aqui mais um texto importante do nosso mestre Amir Haddad. A partir de uma simples homenagem recebida pela Assembleia do Rio pelo seu trabalho e do grupo que fundou há 30 anos, o Tá na Rua, ele constrói um pensar, uma reflexão sobre a relação do Estado com o estado da cultura, das relações do poder público com as manifestações culturais, principalmente aquelas que estão fora  do script da lei, do cuidado jurídico, dos interesses da política, da economia e da própria sociedade, do que é indústria cultural. O que fazer das ruas descalças da periferia e dos centros das grandes cidades, das praças e ruas com seus corpos maltratados, abandonados, descuidados, reprimidos, militarizados, doentes, violentados e violentos. O que fazer da liberdade sitiada dos que tentam a vida nas ruas como os artistas populares, os camelôs, os sem-teto, os sem-família, etc. Quando lhe falta espaço para  caminhadas, lazer, alegria, criação, festa vital, a rua produz doenças, insetos,violência, mal-estar. Aí sim, a rua, de espaço de ir e vir, de liberdade criativa e revolução, passa a ser lugar repressivo, perigoso, repugnante, "bárbaro." Vejamos o que Amir diz sobre isso.

 

POR AMIR HADDAD*

Pequenas grandes reflexões à respeito das políticas públicas na área da Cultura e das relações do Poder Público com a manifestação Cultural, feitas a propósito da “Moção de Aplauso” concedida a mim e ao Grupo Tá na Rua, pelo deputado Alessandro Molon, presidente da Comissão de Cultura da Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro.

ÍNDICE

I- O significado desta homenagem
II- Cultura- Políticas de repressão ou estimulo?
III- Conclusão

I
O SIGNIFICADO DESTA HOMENAGEM

O FATO

O fato de um representante do poder legislativo do
Estado do Rio de Janeiro prestar
homenagem a um representante da sociedade civil,
especificamente da área da cultura,
tem para mim muitos significados.


O primeiro de todos e,talvez, o mais importante é
o “democrático”.
 
Ao homenagear-me quiz o Deputado certamente
abrir-me um espaço em sua casa, que de resto é
a casa do povo do Rio de Janeiro, para expor um
pouco de minhas idéias a respeito do momento
que estamos vivendo na cidade, no que diz respeito
às questões Culturais e que papel estas podem
representar na construção de um governo,
como um todo. Sua atitude procura corrigir
um erro do exercício de democracia
em nossa cidade, onde parece não haver
espaço para qualquer pensamento de oposição
ou que não esteja, pelo menos aparentemente,
de acordo com as políticas públicas anunciadas.
Desde que nenhuma voz se levante para contestar nada.

Ao abrir-me esta tribuna, o Sr. Deputado parece
estar querendo dizer: “Sr. Haddad, cidadão carioca,
sem título, sem cargo e sem poder, suas idéias,
por pior que possam parecer podem ser importantes
para a nossa sociedade e merecem ser ouvidas e
consideradas. O homem público, tanto do executivo
quanto do legislativo, tem que ter ouvidos para a voz
do cidadão sem poder, que afinal ele está
representando quando chega ao poder,
e por isso, quero abrir para o Sr. um espaço
neste pavilhão do governo para expô-las e
submetê-las ao julgamento dos meus pares
e da sociedade civil, aqui hoje presentes,
e que afinal nós representamos.”

Sr. Deputado, espero não estar colocando palavras
erradas em seus lábios. Sua atitude
revela uma boa prática democrática.
E aqui estou eu, dialogando com meus parceiros
da sociedade civil, companheiros de ofício, e outros
parceiros de outros setores da sociedade
e do poder público, tentando me fazer entender,
e aos meus sentimentos quando chego
aqui para esta homenagem.

Além do espaço para falar, quero também agradecer
por me proporcionar a possibilidade, rara e difícil,
para um cidadão livre no país, de ampliar o alcance da sua
voz. Nós conhecemos as artimanhas da democracia quando
ela não quer ser democrática. É o mais terrível dos adversários,
pois é um controle invisível, mas insuperável.

Estamos aqui inventando um jeito de reinventar a democracia,
e dar voz aos que tem o que falar, mas não encontram o seu espaço.

O outro significado importante de seu gesto, que eu percebo,
diz respeito às relações que se estabelecem entre Estado e
Cultura, entre Poder e Sociedade Civil, e suas conseqüências.

A cultura, e a própria vida cultural não é e não pode ser
uma função estatal. O próprio Estado é produção cultural
da sociedade civil; nós o inventamos e o criamos deste jeito
e iremos mais tarde modificá-lo de acordo com nosso crescimento
e desenvolvimento cultural, quer queiramos ou não.

O Estado apenas zela e estimula da melhor forma possível:
possibilita e viabiliza o crescimento Cultural. Apesar disso as
relações que se estabelecem entre Estado e Sociedade Civil,
entre Poder e Manifestação Cultural são desproporcionalmente
frágeis, quebradiças e distantes, equivocadas.

Este ato nesta casa parece querer diminuir a distância
que existe entre a vida política e a vida cultural.

Isto é mais importante do que parece.

Eu sou um representante de importante setor da vida pública
brasileira, que raramente tem voz, embora tenha muito para dizer,
e que agora tem a oportunidade de ocupar uma
tribuna. Minha simples presença aqui já é repleta de significado.

Percebo neste ato do legislador, o reconhecimento de que
o poder constituído dá pouca importância à tentativa
de uma maior inclusão das questões da cultura na gestão
da coisa pública, e ao me homenagear parece querer dar
um passo para remediar este mal, este defeito da democracia,
mas principalmente para denunciá-lo e deixá-lo evidente,
para que pensemos sobre isso tudo. Se ele não pensou
isso tudo não importa. Eu pensei e o ato tem esta importância.

A Cultura no Governo não deveria ser apenas um nicho do
Executivo na gestão da coisa pública, mas parte mesmo de seu
organismo, de seu sistema de artérias e articulações.

Uma boa relação e constante interação entre os homens ditos
públicos e aqueles da vida cultural do pais, estes sim
verdadeiramente públicos, em qualquer nível, será sempre
enriquecedor para ambos.

O reconhecimento do governo, de que a criação de uma
política cultural para o pleno desenvolvimento da nação
é tão importante para o país, quanto a criação de políticas
para o pleno desenvolvimento econômico, e que um depende
do outro, este reconhecimento, repito, é tão relevante para
o país quanto os artistas, a vida cultural e a manifestação
cultural, em toda a sua extensão, terem, cada vez mais,
compreensão de que estas atividades estão mais e mais ligadas
ao mundo em que vivemos, e com ele interage. E que, portanto,
nossos atos e ações produzem conseqüências negativas
ou positivas, em relação ao nosso desenvolvimento, quanto pior
ou melhor for nossa consciência a respeito.

E que, de uma certa maneira, nós também somos governo,
e que portanto devemos trabalhar para nós mesmos,
é evidente, mas não podemos minimizar a importância
de nossa atuação na vida pública.

A máquina social e suas engrenagens não avançam sem
a lubrificação apropriada da vida cultural. Da qualidade
do óleo a qualidade da vida, da máquina e de suas
engrenagens.

Então, espero que esta homenagem, a mim concedida,
possa significar a possibilidade de um contato maior
entre os seres humanos que fazem política e os que
fazem ou produzem cultura. Seria bom para ambos.

As Secretarias de Cultura não aproximam os políticos
da vida cultural. Elas fazem políticas de governo, e mudam
de governo para governo; e os políticos parece que
pouco se importam com isso, como se a questão cultural
não fosse relevante e não merecesse ser levada em conta,
e considerada por todos que cuidam da coisa pública.

Não quero também ser injusto: muitos homens públicos
gostam, isto sim, dos artistas, de sair junto com eles,
de aparecer com eles. Mas não é disso que eu estou falando.
Veja o caso da Madona, por exemplo. Todo mundo pousou
no ombro dela.

O mundo da política absorve muito, e não sobra tempo paro
o mundo da cultura. E vice-versa também é verdade.
Muitos de nós, da área da cultura, não queremos nem saber
de política, nem de ética, nem de cidadania, porque verdadeiramente
achamos que não dá tempo para tudo isso.

Por isso, acho este momento aqui, talvez histórico.

Estamos nós aqui, do mundo da cultura, do movimento,
da transgressão, da profecia e da utopia, nesta casa, em contato
com aqueles que tem a função de perceber as
modificações e necessidades que a própria vida cultural
vai nos revelando e fazer leis que garantam a continuidade
do processo de criação de uma sociedade mais justa e
humanitária para o país. Romper com a cultura é uma
forma de avançar com a Cultura assim como romper
com as leis é uma maneira de avançar com as leis que organizam
nosso convívio social. Nenhuma lei pode ser eterna. E não o é.

A cultura, antes que tudo e todos, anuncia a modificação e o
desenvolvimento, porque se liga ao afeto.

Perceber a dinâmica de crescimento, e modificação da vida
social, através da Cultura, é essencial para o estabelecimento
de políticas públicas justas e adequadas. Governar
ao arrepio da Cultura é correr o risco de estabelecer políticas
arbitrárias e corretivas sobre uma sociedade que está sempre
em processo de evolução e transformação.
Substituir vida Cultural por produção cultural, pode acabar por,
definitivamente, massificar e esterilizar a melhor produção cultural.

A produção do bem artístico esmorece numa sociedade
estagnada e esterilizada, e seu povo perde sua própria alma,
ficando sujeito a todo tipo de possessão demoníaca, e
manipulação diabólica. A catástrofe, o Anti – Cristo, o apocalipse.

A Cultura pode ser um elemento iluminador das práticas
governamentais, e seus representantes deveriam ser
consultados, antes do estabelecimento de toda e qualquer
política que diga respeito à população (acho que todas dizem):
da construção de um viaduto, à elaboração de uma campanha
sanitária, à políticas públicas de Saúde e
Educação. E principalmente na construção de cidadania.

Com quantos cassetetes se faz um cidadão?

Com a iluminação da consciência ou com o apagão
da repressão e do arbítrio?

Pode o Estado se julgar puro, limpo e imaculado?
E o cidadão sujo, emporcalhado e inconseqüente?

Pode o Estado ignorar a Cultura? A vida Pública?

A manifestação Cultural é o melhor sintoma de resistência
`a doença que nossa sociedade produz, e ela, a manifestação,
precisa ser localizada e estimulada para que a própria sociedade
produza seus anticorpos e desenvolva seus sistemas imunológicos,
auto-sustentados, ou sustentáveis.

Manifestação Cultural e Saúde são coisas intimamente relacionadas.
Um povo que se expressa, é certamente um povo mais saudável.
Se conhece, se orienta, e melhor se
defende dos ataques a sua identidade e sua saúde.

Assim achamos, por exemplo, que toda Secretaria
de Saúde deveria ter em sua estrutura
um setor avançado dedicado às questões culturais
e suas relações com a Saúde Pública.

Este setor garantiria a Saúde, entre outras coisas,
a localização dos “focos” de resistência cultural ou “focos
de Saúde”, em todas as áreas do município e se
encarregaria de estimulá-los e fazê-los crescer, como
complemento às políticas públicas de saneamento e cidadania
responsável. Se estaria assim dando mais
importância aos “focos de saúde” que aos “focos de doença”,
que é como estamos acostumados a trabalhar, para deleite
dos grandes laboratórios e da repressão violenta.

Investir na manifestação da vida, esteja ela onde estiver,
é investir nos “focos de saúde” para dar combate aos “focos
de doença”. Fortalecer o organismo social para que ele
fique mais imune aos ataques que sofre, numa sociedade
injusta e hierarquizada como a nossa. Trabalhar, tratar
a doença através da saúde.

Mas também não somos ingênuos a ponto de acharmos
que a Cultura é a grande panacéia que a tudo vai sanar.

Sabemos que a vida cultural também não está acima do
bem e do mal, e que há tipos de programas e políticas culturais
que, por equivocadas, ou mesmo de ma fé ou
inconseqüência ideológica, poderão trazer grandes malefícios
`a sociedade se não tiverem sobre si um olhar que questione,
rastreie esses efeitos, benéficos ou maléficos
no meio social.

Nem tudo que é chamado cultura é bom para a saúde,
e nem todo produto cultural é saudável. E o meio cultural
é o mais permeável às infiltrações
e controles ideológicos,
efetuados através da emoção inespecífica.

Muitas vezes, todos nós sabemos, este efeito e é arrasador
para a identidade e a vida de uma cidade.

Para compensar achamos, portanto, que toda política
cultural deveria passar por um olhar esclarecido de setores
avançados da área de Saúde, para ser saneada de seus
conteúdos insalubres.

Assim, toda Secretaria de Saúde deveria ter em sua
estrutura um setor importante, que desenvolvesse um
“olhar da saúde” sobre políticas culturais a serem
oferecidas às populações. Muitas vezes estas políticas
se parecem com aquelas “bolinhas” que antigamente
se ofereciam aos cachorros, saborosas e atraentes
por fora e venenosas e cáusticas por dentro.

É essencial um “olhar da cultura” sobre a saúde,
assim como é essencial um “olhar da Saúde” sobre
a Cultura. Questão de mais vida ou mais morte.

Políticas de salvação, redenção, cura, desenvolvimento
ou técnicas de envenenamento
ideológico progressivo, e manipulação mercadológica.

Então, quero crer que, quando um deputado
como o Sr. Molon, homenageia em sua casa
de trabalho uma pessoa como eu, totalmente
voltada para as questões da Cultura e seu
papel nas transformações sociais, quero crer
que ele reconhece na Cultura uma ferramenta
capaz de ajudá-lo a construir um mundo melhor,
e quer que nós da Cultura consideremos este lugar
histórico também a nossa casa.

Não pode o legislativo ignorar os problemas da cultura,
como se fossem apenas questões do executivo ou da sociedade
civil, entregues às turbulências do mercado.
Nem nós da cultura ignorarmos os movimentos da política.

Democracia e diálogo com a Cultura.

Estes me parecem os dois aspectos mais importantes
que eu vejo nesta homenagem que
querem nos prestar, nesta casa onde nossos destinos
são determinados.

Para terminar, citando o professor Nelson Vaz, eminente
cientista brasileiro, quero dizer que estou “pessimista em
minhas convicções mas absolutamente otimista em minhas
ações.”

Obrigado a todos e ao ilustre deputado pela oportunidade
de poder falar para todos, aqui desta casa do povo, que tem
o nome do Tiradentes, mártir da possível Independência.

II

A Cultura

Política de repressão ou de estímulo?

A Cultura

Encarar a vida cultural como produto, e não como manifestação,
sufoca o processo criativo dos cidadãos e divide a sociedade.

É a cidade que se manifesta. Ela tem, quer e reivindica este
direito. Dele depende o crescimento e desenvolvimento
de seus cidadãos.

E, além do mais, uma cidade assim terá uma capacidade
muito maior de produção artística, com valor comercial,
do que de outra maneira. Os produtos artísticos, porque
genuínos, acabariam por ter inevitavelmente maior qualidade,
melhorando também, por sua vez, seus produtores e seus
consumidores, fechando assim o círculo de
importância da Manifestação Cultural na vida das cidades,
além de servir como solução parcial, porém real, para
o impasse e a terrível violência que produzimos
e com a qual não sabemos mais o que fazer, levando-nos
a desesperadamente combater o violento com a violência,
deixando-nos sem armas para combater
a violência, combatendo-a com a própria violência,
em nome de uma ordem desprovida de qualquer conteúdo,
a não ser ela mesma, e que se basta a si mesma.

Mais artistas na rua é pior do que mais policiais?
Qual é a “ordem pública” que a
Cultura saberia mais apreciar e qual é a que a ela se opõe?

A Cultura quer uma ordem pública que não só garanta
a Manifestação Cultural livre em todos os bairros, em favelas,
em praças e terreiros, e igrejas, e clubes do Rio de Janeiro,
mas que também salvaguarde os costumes, tombe bens imateriais,
preserve modos e estilos de vida, etc. etc.

O Rio de Janeiro é uma cidade que se presta a este Sonho
de Utopia Social e Racial, o sonho de criar uma cidade
onde o cidadão tenha uma real possibilidade de crescer,
se desenvolver e ser feliz.

Alguma outra cidade do mundo, mais que o Rio de Janeiro,
por sua localização, clima paisagem, disposição urbana, relevo,
e principalmente por sua riquíssima miscigenação
étnica, alguma outra cidade poderá oferecer ao mundo
uma outra possibilidade?

Nosso atraso nos permite sair na frente! Porque não
sairmos na frente em vez de irmos
atrás como ignorantes, cãezinhos obedientes
e com pouco discernimento?

Não será possível olhar para o Rio de Janeiro e vê-la,
com orgulho, como modelo único de cidade brasileira?

O Brasil é tão melhor, meus amigos. Do que Oslo, na Noruega,
Londres na Inglaterra ( que matou um brasileiro porque se
parecia com um árabe) ! De Miami, do crime e do jogo!

Que mais que nós queremos afinal? Detroit, Nova York, Chicago?

Por isso é desejável que os homens e mulheres que estabelecem
as políticas públicas desta cidade tenham fortes laços com a sociedade
civil e sua manifestação cultural.

Estas questões são essenciais para planejarmos qualquer
política de desenvolvimento, e os políticos não deveriam ignorá-las.

Por isso também não é indiferente quem seja o titular da
Secretaria de Cultura das Cidades.

As Secretarias de Cultura, em qualquer município ou estado
deveriam ser encaradas como equipamentos estratégicos
para o desenvolvimento da cidadania e da Identidade
Cultural.

Freqüentemente são confundidas com esportes, lazer, turismo.
E embora elas sejam tudo isso e muito mais coisas, como
Educação e Saúde, a maior parte das vezes ela é
encarada como peça menos importante para o grau
de desenvolvimento humano do
cidadão.

E muitos vezes, usada apenas como moeda de troca
para saldar eventuais compromissos políticos dos governantes
eleitos, que geralmente não têm a cultura como elemento
importante na sua abordagem do mundo, ou em seu
programa de governo.

Mas as Secretarias de Cultura deveriam prestar assessoria
e consultoria a todos os Setores responsáveis pela gestão
das coisas públicas.

No esporte, no turismo, no lazer ou Educação
(como nos CIEPs do Dr. Brizola) na Saúde,
onde os horizontes talvez mais se confundam,
tão ligada está uma coisa na outra.

III

CONCLUSÃO

Além da Medalha da Ordem do Mérito Cultural
recebida do presidente Lula, já tenho a Medalha
Pedro Ernesto, do Município, já tenho o título de Cidadão
Carioca, e agora esta homenagem e o aceno para o título
de Cidadão Fluminense. Este é um troco magnífico
que recebo por amar esta cidade e seu povo, e por me
embeber de sua cultura, trabalhando em contato diário
com a sua população há 30 anos, pelas suas ruas.

Aqui é nosso berço. Da etnia carioca, de sua mistura,
nasce nossa identidade, de sua ética popular nasce
nossa estética. Queremos estar vivos e queremos que
esta cidade permaneça viva dentro e fora de nós.
Nós também morremos quando a cidade morre.

E estamos nos sentindo agonizantes como nunca
nos sentimos, nem mesmo nos piores
Momentos da ditadura. Quero me orgulhar de ser
carioca e de todos os títulos que recebi
ou vier a receber. Não quero me sentir criminoso
só porque sou carioca e vivo aqui.

A ditadura fazia com que cada cidadão fosse tratado
como possível inimigo pela polícia
Militar. Sempre fomos perseguidos, nunca protegidos.
Depois de tanto tempo achava que estávamos livres
desta sensação de culpa e desta desagradável experiência
de “liberdade consentida”, depois de tantos anos de luta
e resistência à falta de liberdade da ditadura.
Falta de liberdade e liberdade consentida, por decreto
ou regulamento são faces da mesma moeda, da intolerância
e do arbítrio. O fascismo aumenta num mundo
em crise, diante de uma civilização que se desmorona diante
de nossos olhos, como o Terremoto do Haiti. A Cultura nos ajudará
a reconstruir um mundo novo, nascido das Cinzas deste que se acaba.


Em todas as partes do planeta há sinais de vida nova,
ao lado dos terríveis e dolorosos sinais da decadência.
Cabe a nós agora, escolher a que deuses queremos fazer
oferendas. Àqueles de um mundo em decomposição, que se
recusa a admitir sua decadência, ou aos outros que nos
revelam caminhos iluminados por uma possível esperança?

Amir Haddad

*Mais importante pensandor do teatro popular em atividade no Brasil que nos anos 60 do século XX enfrentou a ditadura militar quando ainda atuava no Grupo de Teatro Oficina de São Paulo. Nos anos 80, já no Rio de Janeiro e consagrado ator e diretor teatral, opta definitivamente pelo teatro popular de Rua e funda o Tá Na Rua que completa três décadas de luta pela liberdade de expressão e pela criação transformadora e humanizante.