Produção de saúde e produção de sofrimento.

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Política Integral de Saúde Mental:
As Famílias e o Controle Social.

Uma política pública de saúde trata dos agravos a saúde e de seus determinantes simultaneamente. Desse modo, ela é uma estratégia comum articulada aos demais setores que devem promover o bem estar social. As ações de prevenção e tratamento são indissociáveis, tanto quanto o são, as ações de gestão e de atenção: Isso é o que chamamos de humanização do cuidado.

Imaginemos que uma população está tendo problemas respiratórios em função de vazamentos massivos de produtos tóxicos inodoros e incolores oriundos de uma indústria química. Embora presentes esses fatores de adoecimento são invisíveis para o cidadão comum.

Com a saúde mental dá-se um fenômeno parecido: Os fatores determinantes do sofrimento e do transtorno mental ao serem naturalizados, tornam-se invisíveis. Ao serem naturalizados, esses determinantes não tratados, agravarão o problema.

Certamente não haverá meios, recursos, estratégias ou qualquer curso de ação que seja bem sucedido na luta para sanar as consequências na saúde da população causada pela exposição continuada a fatores naturalizados e invisíveis, como no exemplo acima do ar contaminado.

Com a saúde mental de uma população, temos uma situação semelhante. A exposição ao estresse físico e mental em qualquer fase da vida pode desencadear diversas formas de sofrimento psíquico. Precisamos considerar que em qualquer comunidade, os grupos familiares apresentam variações nas condições individuais que cada pessoa possui para resistir ao estresse. Ou seja, algumas pessoas, são mais frágeis e outras mais resistente.

No entanto, a intensidade dos fatores estressores pode afetar até mesmo as pessoas mais resilientes. A exposição a violência, ao abandono, a negligência e o abuso na infância são altamente impactantes. Mais cedo, ou mais tarde crianças submetidas a ambientes em que as relações humanas estão deterioradas vão apresentar sofrimento psíquico e demandarão alguma forma de atenção à sua saúde mental.

Mesmo adultos treinados para atividades em que o estresse é comum, como profissionais da saúde, da segurança pública e, atualmente, professores apresentam índices cada vez maiores de sofrimento psíquico desencadeado por estresse pós-traumático – EPT. Sendo que essa exposição pode ser a episódios agudos ou, a um cotidiano cronicamente hostil.

O sofrimento de pessoas habituadas e treinadas para lidar com situações estremas nos dá uma ideia de como a população em geral pode ser afetada por fenômenos sociais cada vez mais agudos e comuns no mundo contemporâneo.

Não se trata de atribuir apenas ao estreito círculo familiar e de vizinhos a responsabilidade pelos transtornos mentais cada vez mais comuns em nossa população. É certo que casos de violência familiar, contra a mulher e contra crianças e adolescentes são um problema sério e preocupantemente frequentes.

Mas o contexto de vulnerabilidade social inclui fatores muito mais amplos. Mesmo os casos de abuso sexual na infância estão encadeados com uma série de condições de vulnerabilidade que incluem os casos de transtorno e sofrimento mental não tratados, por exemplo. 

Do ponto de vista da saúde mental coletiva há, ainda, os fatores estressantes que estão fora do controle das pessoas e são ligadas as condições de vida nas comunidades em que moram. Não sendo isolados e somando-se uns aos outros, temos a violência entre facções criminosas – com esquartejamentos, decapitações, mutilações e outras formas de assassinato e tortura; a exposição aos sons de tiros durante a noite; e aos cadáveres na calçada ao amanhecer; os toques de recolher; a banalização do sofrimento na mídia na forma de espetaculização da violência…

Cada um desses fatores compõe um conjunto de vulnerabilidades que produz intenso sofrimento psíquico e em muitos casos desencadeiam transtornos que demandam diversas, articuladas e combinadas, formas de atenção, cuidado e tratamento.

A pessoa em situação de rua, o usuário que vende eletrodomésticos para compra comprar drogas, o menor infrator, a mãe com sintomas de depressão pós-parto, o trabalhador com transtorno do pânico, todos estiveram expostos a fatores desencadeantes, combinados ou não com predisposições inatas.

Um morador de rua, há uma década já foi um filho, esposa ou marido, em um episódio de separação traumática. Todos têm uma história onde o presente é a manifestação de predisposições e vulnerabilidades desenvolvidas ao longo do tempo.

Nós podemos lidar com uma demanda que respeita uma série histórica ou uma taxa de prevalência confiável. Assim, a sociedade vai construindo as condições necessárias para dar conta de uma incidência crescente de câncer de pele, por exemplo.

Mas quando um fator desencadeante se torna generalizado ao ponto de acabar naturalizado como modo de ser, a política tradicional fracassa. Ela não pode ser planejada adequadamente quando os fatores determinantes se tornam explosivamente presentes, crescentes e, simultaneamente naturalizados.

Atualmente, os determinantes da produção de saúde e bem estar que deveriam ser regra no cotidiano das comunidades, estão sendo convertidos em fatores determinantes da produção de sofrimento psíquico.

Não há na história da implantação da Rede de Atenção Psicossocial – a RAPS – um momento de ampliação tão acelerado como o que vemos desde a virada do milênio. No entanto, nunca eles nos pareceram tão insuficientes.

  • Temos dificuldade em direcionar a formação de profissionais especializados em saúde mental para atuação em comunidades com alta vulnerabilidade psicossocial e econômica.
  • Não há recursos suficientes para investir simultaneamente na saúde, segurança e educação numa proporção que acompanhe a curva ascendente das demandas de atenção à saúde mental.

Não podemos esperar que os pacientes realizem um esforço para o qual lhes faltam as condições mínimas e aceitar que as relações sociais estão em um patamar imutável e naturalizado.

Do jeito que as pessoas vêm vivendo suas relações familiares, comunitárias e sociais não é plausível termos a expectativa de que um exército de profissionais da saúde possa resolver o que constitui apenas a consequência, na forma de um transtorno ou, sofrimento psíquico, decorrente de determinantes micro e macro estruturais que contaminam e determinam a qualidade das relações humanas.

Para a capacidade instalada em termos institucionais, do número de profissionais, dos equipamentos e dos processos de trabalho disponíveis há um limite de demanda possível de ser atendida. Não se trata de não fazer nada se as condições ideais ou adequadas não estiverem presentes. Sempre se pode minorar o sofrimento e tratar dignamente a pessoa que sofre. Ser realista é, inclusive, uma forma de respeitar as necessidades e o sofrimento psíquico individual e coletivo.

O fato é que a Política de Saúde Mental e as metas de para a ampliação da RAPS e do acesso ao cuidado em saúde mental da população implica num pacto entre os servidores públicos e os usuários. As condições psicossociais, a coesão social e a vida no território são determinantes, produzem saúde ou sofrimento.

A comunidade, ao final e ao cabo, vai ser afetada pelo sucesso ou fracasso de qualquer política de promoção do bem estar social. Dar publicidade ao processo e assumir as responsabilidades e corresponsabilidades é uma tarefa de cada um e de todos.