Reflexões biopolíticas – Rotas de fuga dos pacientes (des)controlados

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O QUE REVELAM AS NARRATIVAS DOS USUÁRIOS DA SAÚDE NA INTERNET SOBRE OS DISPOSITIVOS DE CONTROLE DA SOCIEDADE?

 

 
Car@s Amig@s da Rede HumanizaSUS.

Compartilho aqui com vocês algumas reflexões transpostas para o trabalho final da disciplina de “Biopolítica e micropolítica na produção de modelos tecnoassistenciais”, da pós-graduação da Faculdade de Saúde Pública da USP, sob coordenação da Profª. Laura Camargo Macruz Feuerwerker.

Na verdade, este é um convite para a continuação e ampliação do diálogo na rede, através de novos comentários e reflexões que venham se somar a essas que publico agora.

Que tipo de relações construímos quando apenas os saberes técnicos são considerados legítimos e representantes da história da saúde (ou seria das doenças), em detrimento das histórias de vida das pessoas? Que sujeitos são produzidos com a valorização das regularidades, sem abertura de espaço aos riscos, às diferenças e às singularidades?

 

Tradução livre: Diabéticos – as únicas pessoas que tomam pico para não ficarem altas

 

O advento da internet na virada do milênio trouxe novas possibilidades de interações sociais nos âmbitos público e privado. Atualmente há inúmeras redes sociais onde as pessoas podem compartilhar suas experiências e manifestar sua forma de pensar a vida e o mundo. Mesmo antes disso, os blogs já se constituíam como um espaço de propagação de qualquer voz, um lugar de fala para qualquer pessoa interessada em publicar textos na internet, sem limites temáticos para o debate. Um dos assuntos debatidos nesses blogs, e a partir da última década também nas redes sociais, é a saúde, tanto sob o ponto de vista dos profissionais, gestores e pesquisadores, como dos usuários dos serviços (públicos e privados) de saúde. Uma abertura importante para pacientes que, tendo voz, nem sempre encontram espaços para propagá-la, tendo em vista sua posição desprivilegiada na relação de poder com os profissionais de saúde. Um campo onde se batalha pelo reconhecimento das experiências práticas com o processo saúde/doença como conhecimentos válidos, e essenciais à conquista da autonomia na condução da vida da pessoa.

A internet é também um espaço de realização de atividades de controle social por blogueiros e ciberativistas em saúde, seja para cobrar o cumprimento de programas de saúde pela administração pública, seja para contribuir para a tomada de decisões políticas. O SUS tem por uma de suas diretrizes a participação da comunidade na construção das políticas públicas de saúde (artigo 198, III, da Constituição Federal). Pensando a participação social para além das instâncias representativas dos Conselhos de Saúde, o ciberespaço se oferece como ambiente de contribuição irrestrita no debate político. Mas em que condições esses relatos dos usuários se constituem efetivamente em ferramentas da participação social direta no SUS? De que forma esses atores da saúde disputam seu lugar na construção da política pública de saúde? Eles exercem de fato alguma influência sobre a criação de direitos na área de saúde? Essas foram as perguntas iniciais disparadoras do projeto de pesquisa de mestrado sobre as narrativas dos usuários da saúde na internet pensadas como ferramentas de participação social, através do exercício direto do poder popular (artigo 1º, §1º, CF), gestadas no curso das disciplinas “Regulação e Regionalização das Redes de Atenção à Saúde” e “Política e Gestão em Saúde”.

Mas essas questões inciais, centradas na macropolítica de saúde, não abordam as relações micropolíticas constituintes da produção das narrativas dos usuários, e que foram paulatinamente se descortinando durante a disciplina “Biopolítica e Micropolítica na Produção dos Modelos Tecnoassistenciais”. Assim, àquelas perguntas se somaram outras: o que é saúde para os pacientes, e quais são as referências (ou influências) das concepções encontradas? O que entendem por participação social e se exercem essa atividade de forma consciente, ou seja, sabem que são atores da participação social no SUS? Que dispositivos de poder da sociedade de controle revelam as narrativas dos usuários na internet? Os relatos indicam possíveis rotas de fuga e invenções de novos modos de existência para além do modelo proposto pela sociedade de controle? Que sujeitos e que tipo de atores da participação social estão (se) produzindo nesses textos?

A produção de narrativas é instituidora de saberes, conformadores da verdade a partir da eleição de versões e fontes oficiais da história. Desta forma, o conhecimento em saúde está correlacionado a um processo de construção técnica alheia à participação dos pacientes. O registro e debate das experiências práticas dos usuários na internet podem então representar uma abertura de espaço para os “saberes das pessoas”, ou saber histórico das lutas, na definição de Foucault1. Participar da construção do saber em saúde como protagonistas/autores, e não como corpos sobre os quais a ciência atua, constitui uma vantagem essencial aos usuários dos serviços de saúde na produção de novas visibilidades, assim como de novas verdades a partir de suas histórias de vida.

O conhecimento em saúde também se correlaciona à produção de sujeitos. Os usuários, profissionais e gestores da saúde não são, mas se constroem, somos todos produtos sociais, sujeitos em constante transformação pelas práticas sociais, principalmente pelas práticas de controle e vigilância da sociedade. Da disputa de sentidos sobre saúde resulta um discurso produtor de mudanças de sentido da própria vida do sujeito. De que forma os sujeitos são produzidos a partir dessas concepções de saúde e de conhecimento em saúde?

A adesão a um projeto terapêutico padronizado para portadores de doenças crônicas pode ser analisada como um dispositivo de controle que, desconsiderando condições, possibilidades, desejos e convicções de cada pessoa, produz sujeitos com pouca autonomia na condução de seu modo de viver. Outro exemplo seria o constante desabastecimento nos serviços de assistência farmacêutica do SUS, que concentra a atuação do controle social no acesso a insumos e medicamentos, revelando-se como um possível dispositivo de medicalização da existência, já que os outros aspectos das políticas de atenção à saúde ficam relegados a segundo ou nenhum plano de debate pelos usuários pacientes.

O que dizem as narrativas dos usuários da saúde a esse respeito? Mudar de lugar nessa questão, transformando aderentes medicalizados em construtores de seu próprio cuidado e do sentido sobre saúde, favorece a produção de outras possibilidades, através do questionamento de tudo que nos submete, nos aprisiona, nos posiciona na vida. É possível fabricar outro mundo? Pensar na construção de soluções compartilhadas através de relações não hierárquicas, concedendo espaço a diversas possibilidades de existências no lugar de aprisionar as pessoas em suas doenças, quando os corpos e mentes padecem por “irregularidades”?

O poder disciplinar não se restringe à medicina e às instituições de saúde, e é exercido através de todas as formas de poder, pressupondo a submissão de pessoas (dos corpos) não individualizadas a uma certa ordem vigente e ditada por alguém ou por alguma instituição. Ele se perpetua dentro de um sistema disciplinar que, segundo Foucault2, “tende a ser uma ocupação do tempo, da vida e do corpo do indivíduo”. As redes sociais podem ser também analisadas enquanto ferramentas do sistema disciplinar, ou ainda como sistemas panópticos de vigilância: os cidadãos disciplinados/sujeitados informam regularmente suas atividades diárias, como forma de atestar sua existência (nas redes sociais e na própria vida). A ideia é viver em constante atividade de produção e de consumo de informações, pois é através delas que o sistema disciplinar intervém.

Os “resíduos” dessa intervenção são considerados como anormalidades. Aqueles que não se enquadram ao modelo de normalidade, perdem a característica de sujeitos ou são menos sujeitos, enquanto os normais são sujeitados. Seriam então as anormalidades uma forma de resistência ao poder disciplinar? A partir desse entendimento, como exemplo, uma pessoa com diabetes “descontrolada” (não sujeitada a regras padronizadas e padronizantes, mas atuante na construção de seu cuidado) teria maiores chances de descobrir outras possibilidades, um modo de conduzir a vida conforme suas condições, possibilidades, desejos e convicções. Aqui vemos, inclusive, um outro sentido para o termo “descontrole”, desnaturalizando o controle exercido não apenas em relação à glicemia de pessoas com diabetes, mas também à forma de gestão da vida dos portadores de doenças crônicas.

E como aproveitar as redes sociais e demais espaços abertos da internet em favor da produção dessas novas possibilidades de vida e de novos sujeitos? As trocas entre diferentes experiências singulares de pacientes – e também de profissionais, gestores e pesquisadores com os usuários – seriam uma forma de produzir resistências ao controle das instituições sobre seus corpos e suas vidas? É possível um outro jeito de encontrar o mundo e com outras pessoas na transformação da gestão da vida?

Essas foram as contribuições trazidas ao projeto de pesquisa pelo curso da disciplina “Biopolítica e Micropolítica na Produção dos Modelos Tecnoassistenciais”. Acredita-se que, depois de um ano e meio de estudos e trocas com os colegas da pós-graduação, as condições para o início dessa jornada em busca das rotas de fuga dos usuários da saúde não sujeitados, ou menos sujeitados – sem perder de vista que a cada “escapada” corresponde um prévio aprisionamento ou nova captura  – no exercício da participação social em saúde, se fazem presentes. A proponente está ansiosa para descobrir as “rebeldias” construtoras de saúde que se revelarão ao longo desse caminho!

 

 

 

Referências

1. Foucault M. Em Defesa da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2005

2. Foucault M. O Poder Psiquiátrico. São Paulo: Martins Fontes, 2006