Penúltimo capítulo: O começo do Fim da RAPS Joinville

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Uma análise séria, comprometida e qualificada do psicólogo Nasser Haidar Barbosa sobre o sistema de saúde mental do município de Joinville e a gestão do prefeito Udo.
Ele é Coordenador do Centro de Direitos Humanos de Joinville.

Olá companheiras e companheiros de RAPS,

Peço 10 minutos da atenção de vocês para a leitura deste texto que ficou um pouco extenso.
Quem me conhece sabe que desde 2015 assumi a coordenação de saúde mental em Joinville com a tarefa de continuar o trabalho que durante quase duas décadas a Sandra Vitorino manteve neste município juntamente com várias outras pessoas “mentaleiras”.

Apenas em 2008 me juntei a este grupo, ainda como psicólogo atuando na ponta (Atenção Básica) e entendo que meu comprometimento com a RAPS resultou no reconhecimento que recebi de minhas colegas me levando a coordenação do CAPS AD de Joinville entre 2011 e 2014. Lá, implantamos a UA, o Consultório de Rua (antes de se tornar Consultório na Rua) e produzimos muitos outros avanços a fim de fortalecer este que é um dos pontos mais vulneráveis da Reforma Psiquiátrica, o das políticas AD.

No atual contexto político e social, seja dito claramente, neste período de exceção resultante do GOLPE que vivemos em nosso país, os reflexos de todas as investidas neoliberais não se fazem sentir apenas pelas grandes pautas em nível federal. Não quero me deter aqui a fazer grandes análises de conjuntura política, vocês têm outros canais mais qualificados para isso, porém entendo que é preciso ressaltar o nefasto efeito em cascata que as ações dos golpistas ensejam em todas as esferas de gestão e também no cotidiano de cada pessoa em cada comunidade.

O fascismo não é uma novidade, a homofobia, o racismo, o machismo que matam, são uma realidade histórica no Brasil. Aqui em Joinville também! Porém, a novidade desse momento reside na supressão da hipocrisia. Isso é grave! Antes éramos uma sociedade racista, homofóbica e machista que se envergonhava disso, ou que negava. Agora, continuamos com todos estes defeitos, mas parecemos nos orgulhar deles. Me chamem de comunista (é um elogio para mim), mas Marx e Engels (não Hegel) já apontavam essa consequência de se viver em um sistema fundamentalmente voltado para o Capital, “torna-se sagrado o que é profano e profano o que é sagrado” (ver o Manifesto do Partido Comunista).

Então amigxs, não só da retirada de direitos se faz um golpe, mas da destruição cultural do poder de luta e do sentimento de comunidade. Esse é um dos efeitos que estamos vivendo e aturdidos estamos tentando entender.

Voltando para Joinville, mais especificamente para a RAPS de Joinville. Desde 31 de dezembro último não sou mais o coordenador de saúde mental da cidade. Até aí tudo bem. Se vale o registro, fazendo minha autocrítica, acredito que durante 2015 tive um desempenho muito aquém do esperado para a função e para o meu potencial. Acumulei outras representações, me envolvi mais profundamente com o mestrado e com as questões de direitos humanos, além do efeito do GOLPE em mim, que como outrxs colegas, me atingiu emocionalmente de maneira avassaladora.

Tudo isso me fez avaliar minha permanência no cargo de coordenador de saúde mental a ponto de sugerir para minhas colegas que pensassem um nome para a transição durante 2017. Da mesma forma, sou maduro o suficiente para saber que era real a possibilidade de a própria gestão me retirar do cargo.

Assim, não foi surpresa quando recebi a notícia do término dos meus trabalhos na coordenação de saúde mental em 02 de janeiro. Porém, atônito recebi mais do que isso: fui também informado de que a Gestão pretende extinguir o cargo de coordenação de saúde mental em nossa cidade. Para quem não conhece nosso contexto de rede pode parecer mera formalidade ou apego aos acúmulos institucionais, porém não se enganem, em uma RAPS do tamanho da nossa, não é possível garantir a continuidade do modelo de ATENÇÃO PSICOSSOCIAL sem uma equipe orquestrando e garantindo os princípios do SUS e a direção técnica nas diferentes dimensões do cuidado e do ser e estar REFORMA PSIQUIÁTRICA.

Além deste grave retrocesso, ainda temos como incerta a continuidade dos trabalhos do SOIS (Serviços Organizados de Inclusão Social) que funcionam em Joinville como nosso ponto de REAB e Convivência desde muito antes do estabelecimento de portarias que regulamentassem este tipo de atribuição nas RAPS. Entre outras coisas o SOIS é responsável por administrar as Residências Terapêuticas em Joinville (temos duas, sendo uma implantada recentemente sob minha gestão). O SOIS desenvolve programas de apoio à atenção básica bem como foi o grande responsável pelo Projeto Percursos Formativos da RAPS.

 

 

Outro problema sério é a incerta reorganização das coordenações de CAPS em nosso município. Em uma lógica de “fazer mais com menos” que desconsidera a complexidade do que se deve efetivamente fazer, a gestão municipal (não por coincidência é do PMDB golpista) tenta importar modelos de administração que adoecem trabalhadorxs na iniciativa privada para o campo do funcionalismo público, diminuindo cargos, aglutinando funções, atribuindo aos coordenadores o papel de “vigilantes de RH” e precarizando grande parte das instituições de saúde com ideias que só levam em consideração o contexto econômico em detrimento de qualquer leitura técnica tão necessária para o devido desenvolvimento do SUS com qualidade.

Por fim, cabe destacar que em uma relação que tenho definido como messalínica, nossa gestão tem produzido sua pauta de cuidados e prioridades de saúde quase exclusivamente a partir da relação com o judiciário (não coincidentemente o mesmo judiciário que é articulador do GOLPE), onde qualquer esforço por embasar tecnicamente as ações dos trabalhadores da Rede é suprimido pela ameaça e pela submissão “devidos” aos juízes e promotores.

Tem sido assim no processo de internações compulsórias que foi a área onde mais ativamente atuei nos últimos 5 anos e onde melhor desempenhei o papel de defensor da reforma psiquiátrica, desinternando, desinstitucionalizando e evitando internações e institucionalizações violadoras de direitos. Esse, amigxs será provavelmente nosso maior retrocesso com o atual plano de governo. Joinville tende a desconfigurar sua rede e aos poucos retrocederá do modelo de atenção psicossocial para o modelo manicomial e hospitalocêntrico.

Mas nem tudo é desgraça. Apesar do nefasto contexto que denuncio aqui e que peço que seja repassado por vocês para todos os grupos de resistência de que fazem parte, aviso que volto para a ponta! Vou desempenhar minhas funções como psicólogo no CAPS i e lá, onde somos muito necessários, vou produzir resistência ética, técnica e política. A luta continua!


Nasser Haidar Barbosa
Psicólogo – CRP 12/06609