Cabe no cotidiano dos serviços de saúde o cotidiano das mulheres?

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Ilustração: Vicky Nanjappa
 
                     Quando falamos de epidemiologia, logo nos remetemos a aquela disciplina presente nos cursos de saúde responsável por demostrar em grandes proporções como “caminha” determinado agravo ou doença. Geralmente o agravo pouco aparece nas discussões desta disciplina, centralizando-se nas doenças infecto-contagiosas e em poucas doenças crônicas como câncer e diabetes mellitus. Segundo o documento “Seleção das doenças de notificação compulsória: critérios e recomendações para as três esferas de governo”, do Ministério da Saúde, o agravo surge como elemento para diferenciar o “biológico” da doenças transmissíveis, expondo uma visão mais abrangente sobre as outras doenças. Na prática, tanto as doença transmissíveis como as não transmissíveis são trabalhadas a partir de seu elemento fisiopatológico, o agravo, como visão “plural” da doença, fica limitado as causas externas de morbi-mortalidade, da qual praticamente não falamos em nossa formação.
                    A violência sexual entra aí, não como uma doença, mas como um agravo devido a seus determinantes sociais. Tornando-se apenas a partir de 2003 parte dos eventos que devem ser notificações compulsoriamente por profissionais de saúde, a fim de se ter um panorama da situação anterior e presente do agravo e criar estratégias e ações de controle nos serviços de saúde públicos e privados. Porém, apenas em 2006 é criado o Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes do Ministério da Saúde (VIVA), a fim de informatizar e centralizar as notificações, e em 2011 a violência sexual entra definitivamente na Lista Nacional de de Notificação Compulsória, sendo agora centralizada no Sistema de Informações de Agravo de Notificação do Ministério da Saúde (SINAN). 
                     Anteriormente a tudo isto, era de responsabilidade da Polícia Civil notificar casos de violência sexual, e como, até hoje, não existe nenhum sistema de informação que centralize as notificações municipais, estaduais e nacionais dos serviços civis-militares, essas informações pouco contribuiam para a elaboração de estratégias de combate à violência, além da obrigação em freguentar um ambiente que pouco dará apoio assistencial e psicológico a vítima.  
                    Entretanto, mesmo com os avanços no reconhecimento da violência sexual como um problema de saúde pública, isto não significa que o acolhimento as vítimas e a notificação dos casos ocorra integralmente. 
                    Quando falamos de violência e, principalmente, violência contra à mulher, estamos lidando diretamente com elementos culturais das sociedades. O papel da violência e o papel da mulher como parte de um grupo está presente em todos os documentos instituintes de Estados, religiões e ideologias, sendo assim, eles são históricos e se modificam de acordo com o avançar da história, não são elementos naturais e nem mesmo caminham em uma linha reta de progressão, mas ramificada em diversas trajetórias com diversos sentidos. 
                    Assim, ao mesmo tempo em que avança-se com a notificação, há a resistência em considerar a violência contra a mulher como uma forma de violência e a mulher como agente de seu próprio destino. Violências cotidianas são naturalizadas e não reconhecidas nem por profissionais de saúde como violência, quando reconhecidas fica de responsabilidade da vítima a ida as serviços de saúde para seu “tratamento”, quando não ainda é diretamente direcionada para delegacias, se por acaso chegar aos serviços de saúde há diversos elementos de barreira que pode encontrar, como a “explicação do porque está lá” e um olhar fisiopatológico sobre seu corpo a fim de deter a gravidez, DSTs e o desenvolvimento de doenças mentais apenas com a medicalização. 
                     O caso de estupro coletivo que ocorreu com uma adolescente de 16 anos no Rio de Janeiro espantou o Brasil. Mas o caso de Beatriz, a adolescente violentada, é exceção. 
                     Exceção? Como se no país a cada 3 horas uma mulher é estuprada?  
                     A exceção aqui não é a violência, ela, infelizmente, é cotidiana, a exceção aqui citada é a notificação. A maior parte dos casos de violência sexual não chega nos serviços de saúde devido a enormes barreiras existentes entre ele e as mulheres, para além da notificação de violência. 
                     Cabe no cotidiano dos serviços de saúde o cotidiano das mulheres? Cabe no processo de trabalho dos profissionais de saúde, do agente comunitário de saúde ao epidemiologista, o reconhecimento do processo de vida da mulher como um elemento estruturante do trabalho? Cabe na saúde a mulher? Cabe na mulher as mulheres diferentes, divergentes e que fique claro que não tem a mesma história, não tem a mesma vida, não tem a mesma perspecção e são assim e muito obrigado?
                      Por fim, através de uma pesquisa no TABNET do DATASUS, através de informações de Doenças e Agravos de Notificação – De 2007 em diante (acesso aqui https://www2.datasus.gov.br/DATASUS/index.php?area=0203&id=29878153), procurei informações sobre violência sexual de 2009 até 2014 (os dados de 2014 ainda estão incompletos). Neste link conseguimos informações das notificações compulsórias centralizadas no SINAN, e encontramos informações como o tipo de violência, a frequência da violência, a relação com o agressor, o sexo do agressor, o sexo da vítima, o uso ou não de drogas, dentre diversas outras informações.
                    Numa breve pesquisa, consegui organizar em 3 tabelas algumas informações de extrema revelância para se entender o panorama atual do estupro no Brasil. Me perguntando “quem sofre mais estupro?”, “com que idade essas pessoas são violentadas?” e “quem é o agressor?” me deparei com uma violência que porcentualmente é constante ao longo do tempo, que atinge os dois sexos, mas, sem dúvida nenhuma, tem uma relação direita com o controle e a desumanização dos corpos das mulheres.

 

Os dados referentes ao sexo da vítima ignorado ou em branco e tipo de agressor ignorado ou em branco foram desconsiderados por representarem menos de 0,2% dos casos. Isto significada que, pelo menos para estas variáveis, a notificação é ótima. 

 

 

 

                     Me deparei com uma violência que está diretamente associada com outra violência: a pedofilia. Juntas, os casos de estupro em crianças e adolescentes, representam mais de 60% dos casos.

 

 

                    E por fim, me deparei com uma violência mais próxima do que podia imaginar. De 60 a 80% dos casos confirmados, o agressor é um conhecido. O estupro não é uma epidemia que vem de fora e atinge uma população, ela vem de dentro e está longe de ser algo natural.

 

 

                    

                     O que acontece que tantos atores distintos, com relações distintas com todas essas vítimas, se achem no direito de interferir nos corpos e desejos das pessoas? Numericamente, e porcenturalmente também, está claro que estamos falando de problemas de gênero e concepção corporal. Mas, para além disso, é necessário evidenciar que os problemas de gênero, como a violência sexual, não são apenas problemas femininos, quem estupra são homens e é necessário evidenciar e questionar que concepção é essa de gênero que coloca o homem como detentor dos corpos e vontades humanas. Estamos falando de uma conceção que considera as mulheres, as crianças e os jovens como objetos passivos e a-históricos, esta concepção se achama patriarcado.
                     Infelizmente, essas informações notificadas representam uma pedaço mínimo do que realmente acontece as mulheres no Brasil, porém, mesmo assim, essas informações são produtos de uma luta histórica das mulheres e são de extrema importância para a produção de políticas de enfretamento a violência. 
                      Informações como estas devem ser compartilhadas, humanizadas e incentivadas, principalmente num momento em que os atuais Ministro da Saúde e o Ministro da Fazenda afirmam que o SUS é um problema, a Secretaria de Políticas para Mulheres é extinto e o atual Ministro da Educação recebe em seu gabinete um alguém que naturaliza o abuso e que leva como proposta para a educação brasileira o fim da discussão sobre gênero e a negação da história de luta e a maior invisibilização da violência contra a mulher. Ou a informação em saúde e a epidemiologia servem como elemento de mobilização e transformação social ou elas simplesmente servem como holofote da desigualdade e perpetuador da situação de violência.
 
Para acabar mesmo, recomendo a leitura de 2 textos que podem fomentar bastante este debate:
1. Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde, do IPEA
2. Mulher, Raça e Classe, da ANGELA DAVIS
 
Fontes:
Seleção das doenças de notificação compulsória: critérios e recomendações para as três esferas de governo. Disponível em https://scielo.iec.pa.gov.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-16731998000100002
Portaria nº 1.271, de 6 de junho de 2014: Define a Lista Nacional de Notificação Compulsória de doenças, agravos e eventos de saúde pública nos serviços de saúde públicos e privados em todo o território nacional, nos termos do anexo, e dá outras providências. Disponível em https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2014/prt1271_06_06_2014.html
Lei nº 10.778, de 24 de novembro de 2003: Estabelece a notificação compulsória, no território nacional, do caso de violência contra a mulher que for atendida em serviços de saúde públicos ou privados. Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.778.htm
Saúde inclui violência doméstica e sexual na lista de agravos de notificação obrigatória. Disponível em https://www.brasil.gov.br/saude/2011/01/saude-inclui-violencia-domestica-e-sexual-na-lista-de-agravos-de-notificacao-obrigatoria
Notificações de violência doméstica, sexual e outras violências contra crianças no Brasil. Disponível em https://www.scielo.br/pdf/csc/v17n9/a12v17n9.pdf