Vivendo em muitas realidades: Um convite a empatia.

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Prolegômenos a ampliação da noção e do sentido do humano e da humanidade. 

 

 

Preâmbulo 

Proponho o conceito de noçãocomo aquilo que, a priori, opera no hábito de ser. E, simultaneamente, no sentido como sendo o significado a posteriori que o ser aplica ao hábito. Noção e sentido estão em constante movimento. Esses movimentos deflagram encontros espinosanos. No encontro dos seres emergem noções e sentidos. Existem os que afirmam. Existem os que negam. Mas é sempre na potência do ato que o sentido faz sentido. E o hábito leva a perseverar na existência e/ou na destruição. Vivenciar a realidade como Espinosa a concebe, implica numa abertura para a diversidade, para a multiplicidade, para a alteridade e para a empatia. Nesse texto pretendo resenhar minhas observações e projetar formas de acolhimento da diversidade num novo modo de conceber o humano e a humanidade. Uma perspectiva que permita articular a pessoa que somos com a coletividade que instituímos e que nos institui, numa relação pendular ou de circularidade. 

 

 

Premissas da investigação 

Minha graduação em Ciências Sociais na UFRGS foi em julho de 2006. Eu poderia ter retornado as salas de aulas e iniciado o roteiro tradicional de pós-graduação. Mas, segui uma outra inclinação, difusa em termos racionais a ponto de não parecer uma escolha, de não parecer uma tomada de decisão aberta. Cheguei a interpretar que tive medo e me acomodara. Podia aceitar isso, se fosse o caso, pois obter um lugar de conforto para existir no dia a dia de um trabalhador da saúde não pode ser exatamente uma meta modesta. O desafio que nos arrebata nesse século é sermos imensamente comuns e imensamente felizesUm tipo de mandato contraditório numa sociedade em que ter o que poucos podem possuir é uma distinção tipicamente remetida a situação de sentir-se feliz.

Entendi que vivendo minha vida profissional teria um pouco das duas coisas. Estabilidade em meu mundo conceitual e desacomodação na atuação como trabalhador da saúde e da educação. Mas sentimentos não são nada cartesianos. Há muita mestiçagens e hibridismos nas formas acomodação/ desassossego. Hoje entendo que não me acomodei. Segui um fluxo do instinto, fiz uma aposta intuitiva.

Em 2009 estava estudando de modo formal novamente, cursando a pós-graduação em Humanização da Gestão e da Atenção do SUS. Em 28 de março de 2009 fiz minha primeira postagem na RHS. Dei continuidade ao gesto de trilhar um método para permanecer na pesquisa, seguir no rumo da curiosidade e da investigação herdados de minha infância. Continuei meus estudos por um roteiro e um método heterodoxo. Uma (anti) metodologia, mais precisamente.

Por isso, paradoxalmente, a opção de falar em primeira pessoa, quando falar em terceira pessoa é o mais tradicional em termos de método investigativo. Deixei de ter um orientador vinculado a uma instituição para ter uma legião de intercessores, de interlocutores, seja para refinar o processo de referência às escritas que disparam minhas reflexões. Seja para revisar meu trabalho em termos de coerência, clareza, estilo, ortografia e sintaxe no pleno ato da comunicação.

Reli os autores da graduação e conheci outros. Das rígidas disciplinas acadêmicas passei, depois da formatura, a exercitar e a perseverar na exploração, como quem vaga livre por um território desconhecido. Consegui, então, seguir as pistas que me levaram a estudar fora da academia, embora entenda e valorize o arsenal dos vários métodos científicos. A curiosidade me fez buscar uma desinstitucionalização da ação investigativa.

Pude ter meu primeiro computador lá pela metade da graduação. Ele chegou junto com a internet. A minha trajetória pessoal já era de uma certa desconstrução da ideia de individuo plenipotente, dotado de livre-arbítrio e portador de uma identidade essencial e imutável. Mas depois da internet, entendi a expressão “metamorfose ambulante”.  E agora busco entender os impactos sobre a noção de individualidade (especialmente do individualismo liberal) causados pelo surgimento de uma Esfera Pública mundial e colaborativa. 

 

Inteligência Global Coletiva 

A Esfera Pública mundial ainda incipiente, mas de grande potência transformadora, pensada por Pierre Lévy, me pareceu uma arena aberta a produção teórica e, pertinente no processo de investigar e identificar evidências. Especialmente, indícios de tecnologias leves existentes no mundo das relações humanas e, no entanto, não indexadas, como saberes efetivos e afetivos.

A vida potente e inventiva simplificada, às vezes, no uso pejorativo do termo senso comum é vasta e muito interessante. Meus encontros ao longo da vida profissional, como auxiliar e técnico em enfermagem nunca foram com pessoas comuns. Ou, dito de forma parafraseada, “de perto ninguém é, de fato, comum”. Há algo de extraordinário na existência humana que não pode ser reduzido na expressão de nossa ancestral hierarquização dos papéis sociais, da distribuição de prerrogativas, de poder e de riqueza material ou “intelectual”.

Pensar a (e na)  internet, junto com as considerações sobre meu cotidiano profano, constitui o combustível mobilizador para produzir minha escrita. Acredito que, para além das disputas fisiológicas em torno do capital simbólico intelectual, precisamos construir uma direção, desenhar a arquitetura que desejamos para o devir que a tecnologia colocou a nossa frente. Aquilo que Pierre Lévy chama de inteligência coletiva global a partir da conexão mundial de computadores, pode conter um esboço de um mundo totalmente diferente e, mesmo assim, na maioria de seus aspectos, desejável.

Me interessa a pesquisa/ intervenção sobre a interação planetária entre pessoas conectadas com pessoas, máquinas conectadas com máquinas e pessoas conectadas com maquinas. Todos dinamicamente utilizando motores de busca, gerando um imenso banco de dados do pensamento e registro das ações humanas. De certo modo já vemos algoritmos “pensando” tabulando os imensos “Big Data” e criando um universo meta semântico onde além de informações teremos, nas palavras de Lévy, um banco de dados de conceitos, de ideias e criações humanas. Ou seja, um mundo completamente novo. Um devir ao qual deve ser acrescentado nosso desejo, nossa volição e nossa aposta. Trata-se de criar em meio a incerteza. Não está em questão a liberdade ou o livre-arbítrio, mas sim a possibilidade trágica da intenção.

Quando, em um dado momento, busquei a seleção para realização de mestrado, a orientadora escolhida me alertou que existem duas grandes instituições conservadoras nesse mundo em profundas transformações: A igreja e a Academia. O que deve passar é liberado e impedido no interior dessas duas instituições que datam da idade média e que gestaram a modernidade. Nas disciplinas o que está em jogo é o mercado de capital simbólico nos termos de Pierre Bourdieu, ou seja prestígio e honra associados a um nome e a sua obra. A questão é quando o nome é uma polifonia de vozes. Identificamos uma legião de identidades que atravessam a reflexão do autor e falam desde outros lugares e tempos nos textos. Se é assim, a quem pertence o capital, o prestígio, o nome e a honra?

Assim, foi preciso decidir por entre estar na corte, tendo uma origem plebeia, ou retornar ao lugar de onde vim. Um lugar de vida e não de obras, um lugar do comum e do banal, um lugar da multidão e não do autor. Optei por repetir a escolha que definiu minha vida adulta. Na maturidade, mais uma vez a fronteira, as margens e a indeterminação me capturaram para a aventura.

Estou, nesse conjunto de posts na RHS realizando uma genuína investigação conceitual? Esse processo de auto exposição que implica a postura de um “blogueiro” serve a alguém que questiona as noções de liberdade associada ao individualismo e de livre arbítrio ligado a religião? Não sei. Escolhi, olha minha contradição aparecendo, me inclinei por vagar a meia distância de várias instituições. Vagando entre fronteiras para, com abertura a diversidade, poder compreender o mundo que está chegando a cada instante em que o futuro dissolve-se no agora e torna-se o passado.

Recentemente assisti a uma defesa de tese. Me emocionei com a fala final do doutorando, agora doutor, precisamente no momento em que ele defendeu seu texto em termos da escrita que lhe deu prazer produzir, da polifonia que encontrou expressão em seu trabalho de pesquisa. Ele falou do fato de que esse sentido estava acima do rigor do método, acima da forma e da norma. Percebo que na intensidade em que a autoria se dispersa na experiência de vida de centenas de milhares (logo de milhões de pessoas) o sentido da produção de conhecimento é exatamente esse. O sentido de satisfazer a inquietação genuína, o desassossego que leva tantas pessoas a ousarem tentar dialogar com a humanidade do passado e do futuro, ao escreverem, ao descreverem suas experiências e experimentos.

Meus alunos, adultos e adolescentes, tentando concluir o ensino fundamental se deparam com esse mesmo desafio. No Facebook, no WhatsApp, nas páginas de um caderno e nas laudas de uma monografia o desafio da leitura e da produção textual é esse esforço pelo diálogo lançado simultaneamente aos sujeitos, aos indivíduos e à humanidade. 

 

 

Condição Humana 

É paradoxal essa dupla referência do humano. De um lado, à condição ancestral de uma espécie peculiar, sua história e seu caráter social. De outra parte, o indivíduo, o sujeito, o eu, a pessoa, a criatura humana. Uma condição complexa e ambígua, sustentada na oscilação, no movimento ininterrupto e não na imobilidade do conceito positivo e absoluto. Logo de difícil apreensão. Contudo, não é porque não podemos agarrar um conceito que ele marque passo a nossa espera. Ao contrário o fenômeno viaja a velocidade da luz. Existir é tentar acompanhar o acontecimento já estando preso a ele em sua alucinante velocidade. 

A humanidade tem uma curta existência. De qualquer ponto de vista. Como seres vivos, os mamíferos tiveram sua expansão evolutiva a partir da extinção súbita dos dinossauros há 60 milhões de anos. Como espéciesomos primatas emergentes. Uma subespécie que teve a mudança climática como oportunidade para aprender truques a partir da liberação dos membros dianteiros para acessar ferramentas e mais proteínas dos alimentos. Nossa civilização é uma montanha russa de altos e baixos que só recentemente se tornou planetária. A precariedade de nosso modo de vida, das sociedades tecnológicas é tão presente que em praticamente todas as religiões existem mitos escatológicos e narrativas de catástrofes que destroem, cidades, impérios e modos de vida de um dia para outro. As recentes guerras civis no oriente médio são evidências de que nossas ações podem levar a falência do Estado. De resto, a existência pessoal é um pequeno interstício no gigantesco “tic tac” cósmico.

Não somos nada. Somos alguma coisa, mas as réguas do espaço-tempo são inúteis para nos medir. Poderemos, talvez, ser do tamanho do sentido que pudermos produzir. Entre a percepção do que se repete e a formulação de abstrações sobre o mundo, criamos a potência contextual que chamamos de realidade. Um conjunto de conhecimentos, sendo acumulados ao longo da história humana, permitiu que entendêssemos como a percepção alicerça a simulação coletiva e consensual que chamamos de realidade. 

 

A simulação da realidade em nosso cérebro. 

Geralmente pensamos que o custo de simulação de uma Realidade Virtual (RV) é difícil e de alto custo. No romance “O Jogador Nº 1” de Ernest Cline, apenas depois de passada a metade desse século, uma realidade virtual imersiva e convincente irá arrebatar a população do planeta. Segundo Átila Lamarino, do Canal Nerdologia no You Tube, isso pode não demorar muito. Em seus aspectos mais imediatos é um fenômeno do agora. Já está aí.

O fato é que, como as ilusões de ótica nos ensinam, nosso cérebro é capaz de, com alguns elementos básicos, como a distância entre nossos olhos, produzir a visão em profundidade. Com isso, dá conta de simular o espaço tridimensional onde vivemos. Somando os recursos da memória de curto e longo prazo, conseguimos estender para a dimensão do espaço-tempo uma apreensão da realidade que povoa os instantes com reminiscências e projeções. Basicamente a expectativa do futuro e a memória do hábito são os elementos que nos dão a estabilidade da noção de identidade pessoal, circundada por um universo de objetos e outros seres. Não somos o ambiente, os objetos e os outros seres. Somos uma perspectiva única e comum percebendo o mundo.

Aparentemente o animal humano, de modo diferente dos demais animais, vive em um agora ampliado. É esse acesso conceitual, valorativo, moral e ético, ao mundo e à existência, que alicerça nossa noção de real. Essa forma coletiva de alucinar um consenso médio, ou comunal, comum e comunitário decorre, em grande parte, da capacidade do cérebro de selecionar e preencher lacunas, na construção de uma versão consensual e complexa da realidade. 

 

Emulando umrealidade múltipla, consistente e arrebatadora 

Assim, ser absorvido em um mundo de RV pode ser uma experiência existencial tão vívida quanto a experiência tradicionalmente tida como existir realmente no espaço tempo. Mas é, sobretudo, uma experiência da diversidade, alteridade e exercício da empatia – o exercício insuspeitado de uma existência ampliada. A RV pode ser uma abertura para o lugar do outro em si mesmo, e de si mesmo no outro. Mas também pode ser uma aproximação da experiência de ser que é alheia. O outro múltiplo que sou, e os infinitos outros que existem podem se mesclar em um ambiente de RV. 

Há experiências, como o exemplo citado no vídeo do canal Nerdologia, de pessoas que tendo uma autoimagem ruim, depois de assumirem a identidade de Avatares bonitos e atraentes em ambientes de RV, apresentaram mais segurança nas interações “reais” suas vidas pessoais. O treinamento profissional de médicos, soldados, professores, engenheiros, atletas é apenas a possibilidade mais óbvia do uso da RV. Há muitas experiências de uso da RV que não foram antecipadas, como o tratamento de fobias e preconceitos. Entretanto, algumas aplicações são literalmente pesadelos inimagináveis. 

 

Ampliação da experiência do real no uso de imersão em RV. 

Rapidamente a nossa consciência é capaz de assumir como dado da realidade um braço de borracha na clássica experiência em que o braço real da pessoa é ocultado por uma barreira visual. Ferramentas como teclados, alavancas, ou uma bola de futebol tornam-se extensões do nosso corpo. É possível que venhamos a caminhar na superfície de um planeta alienígena com Interfaces Cérebro Máquinas – ICM – (como Miguel Nicolelis descreve em seu “Muito Além do Nosso Eu”) e sentir a textura do solo e o calor da luz de um sol distante.

Os óculos de RV e seus acessórios estão antes, mas também além da ICM. Eles podem progressivamente proporcionar a vivência do real numa forma de dissolução ou expansão da noção de eu. Considerando que o resultado de um mergulho na RV seja o surgimento de um eu que já não se perde na dissolução.

Poderemos ver a noção de identidade ampliar-se. Mesmo ao se diluir em uma partícula que permanece no todo, mas que emerge da experiência conhecendo alteridades e empatias diversas. Ao dar ao cérebro a percepção de uma vivência impossível, seja flutuar nas nuvens ou assumir o corpo de uma mulher se você for homem, ou de um homem se você for mulher, a noção de si mesmo se modifica. Afinal, como ser o mesmo após experimentar ser visto com uma cor de pele diferente da de sua etnia? Como seria para um homem a simulação em RV de um parto?

As possibilidades são vastas. No entanto, não são destinos, são probabilidades indeterminadas, são desfechos que não podem ser plenamente antecipados.

As condições técnicas para o surgimento das redes sociais estavam presentes e elas não puderam ser previstas até que surgissem efetivamente. Isso impediu que a televisão fosse transformada na internet e que os internautas ficassem reféns dos interesses das grandes e tradicionais empresas de mídia televisiva. O fenômeno dos smartphones e a indústria de produção de aplicativos e conteúdos que eles tornaram possíveis não foram previstos. Também é verdade que o mundo poderia ter seguido rumos alternativos e a internet poderia ter inúmeras versões, mais ou menos abertas, mais ou menos democráticas no lugar da experiência de conexão que temos atualmente. Os cenários futuros estão, portanto, em aberto. Veremos isso em mais detidamente no tópico seguinte. 

 

Usos possíveis para ferramentas de imersão em RV 

Pode ser significativo para um professor experimentar novamente a condição física e a perspectiva do olhar de uma criança. Igualmente poderia ser possível a simulação de intensas alucinações visuais ou auditivas em que profissionais de saúde mental experimentassem a vivência que leva algumas pessoas ao sofrimento intenso, ou que leva alguns místicos a sentirem o numinoso na forma de estados alterados de consciência.

As primeiras aplicações dos equipamentos de imersão em RV tem sido na simulação de experiências com esportes radicais e pornografia. Mas isso, a despeito de o acesso a pornografia ter sido um dos grandes motivadores do desenvolvimento de ferramentas de produção e troca de imagens na internet, é só a superfície de um oceano abissal.

Talvez venha a ser viável estimular a empatia em pessoas insensíveis, no todo, ou em alguns casos, ao sofrimento alheio. Podemos imaginar prisões virtuais, centros de tortura em que o inferno simulado seja acessado por próteses que o usuário seja impedido de retirar de si mesmo sozinho. Será que o desconforto e o prazer mórbido que sentimos ao assistir vídeos de execuções públicas do Estado Islâmico ou de assassinatos em nossas favelas e guetos, poderia ser vivenciado da mesma forma se fôssemos uma presença virtual em uma cena real? Poderíamos matar alguém o forçando a vivenciar a agonia de um Avatar sendo assassinado. Ser estuprado ou estuprar em uma RV poderia causar os mesmos, ou outros efeitos, mais ou menos danosos, na mente do usuário vítima ou criminoso?

No romance de ficção científica “O Jogador Nº 1”, citado acima, a imersão em RV não chega a ser tratada como um tipo de vício. Mais precisamente, o leitor poderá perceber que a intensidade da imersão pode ser considerada o grande mérito do jogo, como o próprio título do livro entrega.

Somente agora estou lendo “Neuromancer” de William Gibson. Uma obra já clássica que instaura e define o Ciberpunk Nessa obra a imersão em RV é mais semelhante a imersão no caos de uma selva. Como o filósofo John Gray escreve, a exultação gnóstica do corpo liberto da prisão da carne, dá um caráter místico a experiência do personagem principal da Trilogia do Sprawl. Case quer sair da realidade para voltar ao mundo etéreo e idealizado da RV. Em algumas situações o mundo real e o mundo virtual se confundem, numa sequencia alucinada de interpolações entre realidade e RV.

Minha aposta é de que a massificação das vivências de imersão em RV, através dos dispositivos que começam a chegar ao mercado de consumo, podem levar não a um êxodo para fora do real. Mas sim, a uma ressignificação da experiência pessoal e da noção e conceito de “eu” e de “ser”.

Penso que essa experiência do “ser” está dada desde a modernidade e, agora, finalmente, para o bem e/ou para o mal, deve se transformar. Evidentemente que uma noção diferente do “ser” e fundamentalmente da experiência do “humano” numa vivência ampliada do indivíduo e das coletividades pode não ser uma mudança radical, mas apenas mais um giro na roda de mudanças que é recorrente desde a aurora humana.  Afinal, podemos concordar com Bruno Latour quando ele afirma a natureza se estende aos humanos e seus artefatos. 

 

O devir de um novo significado para o humano e a humanidade 

Iniciei minha carreira como professor do ensino fundamental em outubro de 2011.

Foi um choque de imersão num reencontro do conhecido universo da saúde mental, da sociologia e da militância política no front de uma comunidade conflagrada e, em rota alternada, de desagregação e agregação dos valores comunitários.  Vivencio, desde então, de uma forma mais implicada as disputas pelo domínio de territórios de comércio ilegal de drogas ilícitas em espaços urbanos de extrema vulnerabilidade. Senti na pele as múltiplas formas de negligência, abuso e incompreensão. Fenômenos que partem de equívocos de governos, de serviços e servidores públicos formados numa lógica individualista e anacrônica, mas também das próprias famílias e suas comunidades.

A fissura nos laços de coesão social indica possibilidades de ruptura sempre latentes, sempre próximas de explodirem. Essa quase ruptura tem origem na violenta transformação nas bases tradicionais dos significados de ser criança, adolescente, adulto, mãe ou pai numa comunidade urbana. A última década foi suficiente para que a geração mais recente de adultos não fosse capaz de reconhecer o contexto em que as crianças nascidas a partir de 2005 estão crescendo.

Os avanços da telefonia celular impactaram o universo infantil do início desse milênio como o rádio e a televisão fizeram com as crianças e adultos dos espaços urbanos em meados do século XX. Os smartphones e Tablets de baixo custo completaram o cenário de quase absoluta ruptura com a tradição sociocultural recente de populações vítimas do êxodo rural ou da exclusão dos espaços da classe média nas grandes cidades.

Sem estímulo, na forma de Políticas Públicas para a promoção da coesão social, as consequências dessas rupturas jamais serão alcançadas e sanadas pelos serviços de atenção à saúde, da assistência social, de proteção à infância e adolescência, de educação, de justiça e de segurança pública. Precisaremos de uma ação que forje a coesão social nos novos termos das tecnologias da comunicação e da informação. Sem isso veremos dificuldades mais intensas no futuro próximo.

Pode ser necessário uma forma de pacto social semelhante aquela que os japoneses promoveram (com todos os custos que tiveram que pagar) para se modernizarem rapidamente na passagem de uma sociedade semifeudal para uma sociedade industrializada e moderna. É possível, mas não sem custo. Precisaremos de uma vontade tenaz e resoluta e, no caso brasileiro, de nosso tradicional jogo de cintura e criatividade.

As ferramentas de imersão em RV podem dar conta de religar mundos fraturados, alteridades esquecidas e promover a empatia, o respeito a condição do outro, do diferente. Poderemos aprender de formas novas o significado de compartilhar o curso biológico comum de todos os corpos. Poderemos recuperar a nossa comunhão com os demais seres vivos e com nosso planeta. 

 

Considerações Finais 

O curso do acumulo de conhecimento e tecnologias é um caminho trilhado pela humanidade desde sua aurora sobre a terra. No entanto, nas questões morais e éticas nossos desafios ainda são os mesmos. Esperar que a redenção dos nossos instintos mais violentos e destrutivos desapareçam na próxima quadra da história é uma esperança reiteradamente frustrada.

Mas como já foi dito, e já escrevi aqui neste oásis democrático, o senhor da vida e da morte de 100 mil aborígenes nus, vivia no conforto exclusivo de ter servos para espantarem as moscas que lhe importunavam e aliviar o calor que o fatigava. Nada que um camponês do século XIX pudesse invejar.

Durante os últimos 40 anos populações do ocidente e oriente estão conhecendo confortos e bens coletivos que o mais poderoso capitão da indústria do início do século XX poderia sonhar. Os bilhões de habitantes do planeta que ainda vivem sem acesso a água potável, serviços de saúde e educação podem estar até menos infelizes que os angustiados europeus que temem o terrorismo. Mas os cidadãos de Estados funcionais vivem melhor do que os refugiados de estados falidos no Oriente Médio.

É possível escapar do niilismo escatológico e milenarista que ameaça engolir o mundo nesse início de século XXI. Há recursos, existem tecnologias para superarmos nossa milenar e brutal indiferença.

Mas o enorme feito de vontade que pode nos libertar dessa já longa e perigosa adolescência como espécie, exige um salto. Não de fé. Mas de crença moderada na razão, de um respeito pela imensidão do que ainda desconhecemos e coragem realista, resoluta e persistente.

A ágora global e seus dispositivos de restauração da alteridade e da empatia podem fazer nossa realidade chegar ao tamanho de nossos sonhos, de nossas necessidades e de nossas ambições.