A moral e o mundo das ideias.

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A moralidade está impregnada em toda a extensão do discurso. Não podemos evitar o hábito de rotular nossas ações como moralmente ajustadas e corretas. Que todos façamos isso, mesmo quando nossas idéias e ações seguem cursos diferentes e, divergentes, serve apenas para atestar a relatividade do que afirmamos ser um absoluto.

A moralidade, ao contrário da ética, não existe para orientar a ação. Sua função é ajustar um ato à expectativa geral de que tenhamos uma razão justa para agir. Mais do que isso, o pressuposto da moral é que a razão seja um todo coerente num conjunto muito amplo de ações que responde a necessidades diferentes e, muitas vezes, conflitantes.

Por exemplo, ao proteger nossos filhos, conforme a situação exigir, não poderemos deixar de tomar o curso de ação mais eficiente. Excluída a possibilidade de nos equivocarmos ou que o pavor nos paralise, agiremos na direção ética de provemos a segurança deles.

Então, ao nos depararmos com duas crianças expostas ao ataque de um predador, sendo uma a nossa cria (e, não podendo colocar as duas em segurança ao mesmo tempo) a necessidade do filho prevalecerá. Precisamente, será na segurança dele que a intenção irá mover nossa ação. O caso é complicadíssimo se as duas forem nossos filhos (e somente uma puder ser posta em segurança em cada ação). O fato é que primeira escolhida terá mais chance de sobreviver do que a segunda. Aliás, com a segunda o risco de perecermos ao tentarmos salvá-la aumenta. Em casos assim, o determinante é a potência de agir. Se você é muito velho, muito lento, jovem ou ágil, esses condicionantes afetarão o resultado e não o dever de agir de acordo com a moral.

Esse é precisamente o dilema de deus que, sendo o criador de todos os guerreiros, terá a dor da perda em qualquer batalha em que seus filhos se defrontem. Embora ele seja onipotente, não há como salvar a todos os seus filhos que entram em luta. Para salvá-los todos, esse deus teria que violar o livre arbítrio, que é o atributo que moralmente abriga a alma das identidades. Então mesmo o onipotente só poderia salvar seus filhos destruindo suas almas livres.

O caminho teológico da superação desse dilema é escolher os filhos prediletos. Ou seja, justificar moralmente uma situação para a qual a ética não tem resposta. O povo eleito, os justos entre as nações, os fiéis, os santos, os mártires, não importa, são todas justificativas a posteriori para uma situação que, por princípio, é trágica. Toda a noção de pecado, culpa, queda, redenção e salvação servem a necessidade de racionalizar um absurdo.

Por isso, a moral, enquanto inútil para a ação humana, é indispensável para justificar e atribuir sentido ao que fazemos. Para a existência racional de um deus único, a moral é indispensável. E nisso, o deus judaico cristão é um mestre.

Dar seu filho em sacrifício para salvar a alma de suas criaturas, todas capturadas pelo apelo inarredável do pecado, mais precisamente da autonomia, é uma manobra delicada. Contudo, muito útil na tentativa de salvar a ordem unívoca que daria sentido ao mundo. O problema é que deus permanece uma hipótese. E sua ordem é tão útil para uns, quanto insuficiente para outros.

Somente abrindo mão do sentido, e da ordem monoteísta do universo, poderemos observar lucidamente nossa condição. Pois, aceitar que a nossa existência não possua um sentido, ou uma explicação, não significa render-se ao dogma de que a vida não tenha nenhum sentido. A vida tem muito sentido, muitas lógicas e muitas razões. Por isso ela é trágica e pode ser alegre. Indeterminada e imprevisível, causada e aberta ao abismo infinito das possibilidades a vida é imoral porque (multi) referenciada.

O exemplo mais evidente dessa impossibilidade de se referenciar o sentido e o significado em uma única ordem moral e imutável é o da política. A política refere-se a uma ordem jurídica e social que existe para a promoção do bem comum. Despótica, tirana, liberal, democrática ou fascista a política é sempre justificada no pressuposto moral de que uma única ordem pode harmonizar todas as necessidades e conflitos humanos.

Mas ninguém pode deixar de perceber que em qualquer regime ou sistema de governo a política é, na prática, o abrigo ideal para os obscenos, egocêntricos, hipócritas, moralistas e crentes. Admitamos que o sistema democrático representativo, exatamente por ser funcional, acaba por atrair todo tipo de incoerentes, imorais, sociopatas e antissociais.

Não somente porque exista um grande percentual desses desajustados em qualquer amostra populacional que possamos examinar. Mas, precisamente, porque em todos nós existem esses tipos múltiplos de modulações do caráter. O que poderia de fato significar ser um sujeito íntegro, se não integrar esses opostos no conjunto de pulsões, impulsos e paixões que costumamos nomear como identidade, Self ou simplesmente como sendo o “Eu”.

O próprio conjunto de regras de probidade e moralidade pública que é exigido de qualquer indivíduo, ou grupo político, exige uma ampla gama de variações de violações das normas morais e legais. A começar pelo conjunto de regras que é necessário contornar para que seja possível vencer uma eleição.

O “animal político” é um transgressor nato. Movimenta-se num nicho ecológico onde a luta pelo poder e as obrigatoriedades de produção do bem comum, coexistem. Com a diferença de que o bailado sempre pende para o lado do interesse egoísta, ainda que ocasionalmente, a vitória do egoísmo coincida com a direção do interesse do bem comum. Uma causalidade benéfica e inesperada da má intenção.

Não é por nada que todo o bem de civilização que, sob qualquer ótica, possa tornar a nossa vida mais confortável que a de um caçador coletor, tem mais a ver com o acúmulo de conhecimento, do que com qualquer forma de engenharia política ou social. E, certamente, a oferta de cuidados em saúde tem pouco a ver com altruísmo e moralidade.

Não é por efeito do altruísmo que dispomos de água encanada, energia elétrica e acesso a Internet. Ainda que sob as instabilidades políticas tudo isso possa desaparecer rapidamente. Isso deve-se ao fato de dispormos da potência para criar os recursos e a abundância que permitem a solidariedade e a partilha.

O caso é que a impressão de que vivemos sobre um regime de tirania criminosa tem a ver com nossa exigência covarde e irreal de piedade e moralidade. Afinal, se a representatividade política depende da conivência com um sistema eleitoral que é corrupto desde a primeira letra da lei, como podemos esperar que, entre os corruptos, não tenham mais poder, exatamente os que estão dispostos a cometer os maiores crimes?

Desde Maquiavel sabemos que o preço do principado é a habilidade em transgredir mais rápida e profundamente, ao mesmo tempo em que o manto da dignidade e do altruísmo oculta o fundamento real de todo o tipo de poder político.

A exceção confirma a regra e permanece fora dos palácios.

Ou afirmamos a vida ou nos ressentimos contra ela e idealizamos sua redenção no além ou na utopia. A exigência da moralidade implica na negação da vida real em nome de um ideal rebaixado do devir. O futuro não é o lugar da redenção. O futuro pertence a invenção. A moral rebaixa o real e se torna um tipo de bem absoluto, diante do qual este mundo seria um conjunto frio de sombras.