UBUNTU AOS INVISÍVEIS

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Aqui vai minha resposta ao desafio "ubuntu", provocado por Pablo Dias Fortes (https://redehumanizasus.net/92967-ubuntodos-por-um).

Tantos ficaram para trás.Tantas memórias que se perderam no tempo inclemente. Volta e meia um historiador resgata uma identidade perdida em uma crônica obscura ou com letras quase apagadas na pedra. Mas infelizmente, o registro escrito quase sempre é um legado dos que venceram as inúmeras disputas de sentido pelo transcorrer da história dos homens, um painel de lutas e massacres, de violência ora rebelde, ora institucionalizada, de flertes contínuos entre a razão e a barbárie. 

Mas se de fato Cecília Meireles  estiver certa, o que somos é o acúmulo incontável dos que foram: 

Cántico XXIV

Não digas: este que me deu corpo é meu Pai.
Esta que me deu corpo é minha Mãe.
Muito mais teu Pai e tua Mãe são os que te fizeram
Em espírito.
E esses foram sem número.
Sem nome.
De todos os tempos.
Deixaram o rastro pelos caminhos de hoje.
Todos os que já viveram.
E andam fazendo-te dia a dia
Os de hoje, os de amanhã.
E os homens, e as coisas todas silenciosas.
A tua extensão prolonga-se em todos os sentidos.
O teu mundo não tem pólos.
E tu és o próprio mundo. 

Não vou me deter numa análise enfadonha do poema. Basta apenas pensarmos que muito do que a nossa existência se apropria nos foi legado. Mas não é possível prender-se a uma concepção romântica e legre como se aqueles que nos precederam ficassem apenas construindo coisas para o futuro. Muito do que somos é fruto das barbáries desmanteladas pelo tempo mas ainda com forte poder de nos transformar em seres frios e duros frente ao humano que nos é apresentado.

Assim, não queria dar nome. Queria falar dos "invisíveis" que viveram ante de nós e que continuam vivendo aqui e agora. Novamente peço o socorro da poesia, dessa vez de Bertold Brecht

 

PERGUNTAS DE UM TRABALHADOR QUE LÊ

“Quem construiu a Tebas de sete portas?
Nos livros estão nomes de reis.
Arrastaram eles os blocos de pedra?
E a Babilônia várias vezes destruída –
Quem a reconstruiu tantas vezes? Em que casas
da Lima dourada moravam os construtores?
Para onde foram os pedreiros,
na noite em que a Muralha da China ficou pronta?
A grande Roma está cheia de arcos do triunfo.
Quem os ergueu? Sobre quem
Triunfaram os Césares? A decantada Bizâncio
Tinha somente palácios para seus habitantes?
Mesmo na lendária Atlântida
Os que se afogavam gritaram por seus escravos
Na noite em que o mar os tragou.

O jovem Alexandre conquistou a Índia.
Sozinho?
César bateu os gauleses.
Não levava sequer um cozinheiro?
Filipe da Espanha chorou, quando sua Armada
Naufragou. Ninguém mais chorou?
Frederico II venceu a Guerra dos Sete Anos.
Quem venceu além dele? Cada página uma vitória.
Quem cozinhava o banquete?
A cada dez anos um grande homem.
Quem pagava a conta?

Tantas histórias. Tantas questões.”

 

Esse país ergueu-se construindo uma riqueza chafurdada no sangue. Primeiro o sangue dos índios, depois dos negros africanos. As vozes daqueles que eram açoitados não podem mais ser ouvidas. Nem daqueles que tinham membros decepados por serem fugitivos renitentes. Estão hoje como que materializadas nas pedras das igrejas que ajudaram a construir e nos santos que esculpiram. 

As pedras de Salvador clamam pelos alfaiates de 1798, que morreram trucidados, outros exilados no que foi talvez a primeira revolta popular enquanto os executados junto a Frei Caneca na Confederação do Equador tornaram-se mártires esquecidos dos que xingam presidentes exercendo a liberdade pela qual morreram os confederados.

Revolta da chibata, Guerra de canudos, Guerra do contestado, o Calderão de Santa Cruz, as prisões políticas de Getúlio Vargas, os desaparecidos da Ditadura Militar: invisíveis, destroçados, desaparecidos, injustiçados!

E no dia a dia a prisão injustificável; o prisioneiro morto a facadas porque a cela não suportava mais tanta gente, o adolescente preto e pobre morto pela polícia porque um dia iria delinquir, grupos de extermínio fazendo a profilaxia da fome e da miséria. E a mãe que morre parindo no corredor do hospital  porque só trouxe o feto mas esqueceu do CPF e do RG. E as crianças que vão morrendo espiritualmente em escolas precárias para um dia se tornarem os garis a varrer nosso lixo civilizatório. 

Na sacada do apartamento o burguês fuma seu legítimo charuto comunista de Havana. Veste um roupão de seda e fica a pensa no que fará no outro dia. Produz bolinhas de fumaça enquanto milhões de seres invisíveis compõem os tijolos e a argamassa de concreto do prédio, do cofre, do dinheiro. 

O invisível está ao lado. Faz nossa comida, lava nossa roupa e adormece num cubículo apertado apelidado de quarto, nova versão da senzala agora em condomínio. O invisível lota o ônibus, abastece os carros nos dá um "bom dia inaudível" para depois de alguns anos morrer abaixo da media de vida. 

O invisível clama por justiça. O sacrifício não pode ser em vão. Ao olhar o olho do outro, vejo o mesmo medo de uma vida inútil, sufocada em sofrimento. Não! O homem é belo. Não pode ser refém de seu Golém. 

Começamos com poesia e com ela terminaremos. Lembrar sempre que Maykovisky estava certo. Mas esse estar certo não é um princípio que se constrói  por si mesmo a revelia do homem. O Homem é o princípio do Homem  Temos que brilhar e o sol bate a nossa porta. UBUNTU!

 

(…)

‘Vamos, poeta,
vamos raiar, vamos cantar
no mundo de trastes cinzentos.
Eu, sol, verterei o que é meu,
e tu, o que é teu, os versos’.
A parede das trevas,
a prisão da noite,
sob o sol caíram, ambas,
De versos e  luzes uma profusão
brilhe a toda!

Brilhar sempre,
brilhar em todo lugar
até os últimos dias do guerreiro
brilhar –
e sem desculpa nenhuma!
Eis o meu lema –
e do sol