CIDADÃOS PEREGRINOS

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Em relação ao tema da peregrinação no SUS, a lógica territorial no processo de reorientação do modelo assistencial e da definição da atenção básica como porta de entrada do sistema, os usuários do SUS, em sua busca por assistência médica, vêm demonstrando historicamente preferência por prontos-socorros e hospitais, o que traz a tona a grande problemática da oferta e demanda nos serviços. Analisando esse comportamento, foi feita uma pesquisa com grupos focais de usuários, em que consta que a imagem que o usuário faz dos serviços de saúde se relaciona com a acessibilidade, a confiabilidade e a resolubilidade do serviço buscado. Os usuários se referem à organização dos serviços básicos de saúde com o significado de barreiras ao acesso e demonstram ter em relação às Unidades Básicas de Saúde uma imagem de grande limitação de recursos humanos e materiais. Por outro lado, enxergam prontos-socorros e hospitais como espaços de maior resolubilidade. A partir de suas necessidades de acesso, os usuários aprendem "regras sociais" vigentes nos serviços de saúde e constroem diversas estratégias que visam lhe abrir as portas do sistema.

 

Podemos entender que a lógica territorial e a inflexível definição da porta de entrada pela atenção básica impõem ao usuário uma condição em que sua cidadania é dependente do seu endereço de moradia, ou seja, em alguns lugares, ele possui direito ao acesso (é visto como cidadão) e em outros lugares, não. Eu mesma vivi isso de perto no atendimento da Ginecologia e Obstetrícia do HUB, quando para se ter atendimento, era necessário um CEP, e como isso era prejudicial ao usuário, que já se deparava com um impedimento na hora de chegada ao serviço. 

Notem no relato abaixo que o grau de territorialização chega algumas vezes ao cúmulo de definir o acesso do usuário pela rua onde ele mora e não pelo bairro ou região sanitária.

"Eles atendem por rua. Tipo assim, você é dessa rua, então é esse médico que te atende. Às vezes, a gente vai num médico, gosta dele, a gente quer voltar nele. E não pode. Cê tem que ser atendido por um outro. É da rua tal, tal médico é que vai te atender. Aí às vezes você vai, não gosta daquele médico, mesmo se você não gosta dele tem que ir do mesmo jeito."

Desta forma, fica claro e evidente que a inflexível definição de porta de entrada do sistema de saúde pela atenção básica amarrada à moradia do usuário como referência territorial, em vez de promover sua inclusão, dificulta o seu acesso aos serviços de saúde. Como consequência, temos a perda de liberdade em relação à busca por assistência, que contraria princípios constitucionais e destitui o usuário de sua identidade de cidadão e de seu papel ativo como agente intencional na busca e obtenção de assistência. Fica a reflexão de que talvez seja mais inclusiva a proposta de múltiplas portas de entrada, em que o usuário possa obter acesso em tempo e espaço adequados à ele, utilizando-se da tecnologia apropriada à sua real necessidade, seja na UBS, em um pronto-socorro ou em um hospital. 

 

-Cidadãos peregrinos: os "usuários" do SUS e os significados de sua demanda a prontos-socorros e hospitais no contexto de um processo de reorientação do modelo assistencial

Lúcio Henrique de Oliveira; Ruben Araújo de Mattos; Auta Iselina Stephan de Souza. –