“A medicina se aproximou da doença e se afastou do doente”

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 Professor da Universidade de Campinas utiliza obras de arte e textos literários nas suas aulas, com o objetivo de desenvolver nos futuros médicos a chamada empatia – a capacidade de compreender o sentimento ou a reação de outra pessoa imaginando-se nas mesmas circunstâncias, valorizando a dimensão humana do doente.

Compartilho a entrevista sobre o assunto:

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“Quer dizer que médico pode chorar?"

O carioca Marco Antonio de Carvalho-Filho, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Campinas, é uma daquelas figuras boas de conversa que cativam os alunos sem fazer força. Aos 40 anos, ele entende e fala a língua dos jovens. Nos últimos anos, Carvalho-Filho trabalha para reverter um fenômeno cruel detectado na Unicamp.

Os calouros de medicina escolhem a profissão movidos por sentimentos nobres (como entender o ser humano e aliviar o sofrimento), mas são deformados ao longo da experiência universitária. Para enfrentar o problema, o professor criou uma série de atividades baseadas em recursos das artes e da psicologia. O objetivo é desenvolver nos futuros médicos a chamada empatia – a capacidade de compreender o sentimento ou a reação de outra pessoa imaginando-se nas mesmas circunstâncias.

No primeiro ano, Carvalho-Filho usa obras de arte e textos literários nas aulas. O quadro Udslidt (algo como “desgastado”, em dinamarquês), do pintor Hans Andersen Brendekilde (1857-1942) retrata uma mulher que chora a morte do pai num campo recém-arado por ele. É o pretexto para falar sobre a morte e os sentimentos relacionados a ela. “Discutimos a impotência e as fantasias de poder que o médico pode ter como mecanismo de defesa”, diz Carvalho-Filho. “Isso pode levá-lo a indicar tratamentos fúteis que apenas prejudicam os pacientes”.

Durante uma pesquisa acadêmica orientada por ele e realizada pelo médico Marcelo Schweller, alunos do quarto e do sexto anos foram convidados a atender pacientes fictícios, representados por atores profissionais de forma bastante realista. Os níveis de empatia antes e depois das atividades foram avaliados por meio de uma escala internacional de empatia médica. O desempenho dos alunos do quarto ano aumentou de 115 pontos para 121. Entre os do sexto ano, o crescimento foi de 117 pontos para 123. O trabalho, publicado na revista Academic Medicine, tem sido apresentado em vários congressos médicos internacionais. A seguir, Carvalho-Filho explica como exemplos negativos recebidos durante a faculdade moldam o caráter dos futuros médicos.

ÉPOCA – O ensino de medicina provoca nos alunos uma espécie de antipatia em relação ao pacientes?
Marco Antonio de Carvalho-Filho – Não é exatamente antipatia. Entrevistei os calouros durante três anos consecutivos. Queria saber por que eles haviam escolhido a profissão. Mais de 70% diziam que a principal motivação era ajudar o próximo. A segunda era conhecer o ser humano. Citavam exatamente as virtudes que esperamos que um médico tenha. Infelizmente, a tendência ao longo do curso é que eles percam aquelas motivações iniciais e se distanciem dos pacientes.

ÉPOCA – Por que isso acontece?
Carvalho – Filho – Pense na realidade desses alunos. Para entrar numa universidade como a Unicamp, eles precisam ser alunos de alto rendimento. Vivem em famílias pequenas, têm pais graduados, nunca trabalharam na vida e são solteiros. São garotos privilegiados.

ÉPOCA – De que forma essa condição privilegiada dificulta a adaptação deles à nova realidade?
Carvalho-Filho – Os alunos chegam superprotegidos, com pouca experiência de fracasso ou perda. A maioria nunca perdeu ninguém – nem um tio, uma avó. A sociedade produziu uma geração que cresce confinada em casa, sem a vivência da rua. Isso leva à perda de capacidade de comunicação. Quando esses garotos entram na faculdade de medicina, são expostos à pobreza e à doença. Os pacientes sofrem, perdem funções, morrem. Quando o aluno está diante do sofrimento e não tem instrumentos para lidar com ele, cai na armadilha de usar o cinismo. É natural que isso aconteça. O cinismo – ou distanciamento afetivo – é um mecanismo de defesa.

ÉPOCA – Os estudantes não têm oportunidade de refletir sobre esses sentimentos?
Carvalho-Filho – Falta esse espaço nas escolas médicas, tanto no Brasil como no Exterior. A medicina se desenvolveu de forma tão tecnológica a ponto de suplantar o conhecimento dos últimos 5 mil anos. Nesse processo de especialização, ela se aproximou da doença e se afastou do doente. O aluno  tem que estudar tanto que se esquece da dimensão humana do paciente. Quando percebemos isso na Unicamp, decidimos criar um núcleo para lidar com essa questão.

ÉPOCA – Que tipo de intervenção vocês fizeram durante a pesquisa?
Carvalho-Filho – Criamos pacientes fictícios com a ajuda de uma companhia de atores formados na Unicamp. Construímos pacientes extremamente densos afetivamente. Uma mulher que recebeu o diagnóstico de câncer de mama e não quer se submeter à cirurgia. Um rapaz que imagina ter uma doença cardíaca e, na verdade, enfrenta um tremendo sofrimento porque perdeu o emprego e é arrimo de família. Vários outros casos. Os atores usam uma técnica de realismo. Todos sabem que são atores, mas 96% dos alunos dizem que se sentem diante de pacientes reais. Os alunos atendem esses “pacientes” e depois fazemos um debate. Discutimos os sentimentos e as habilidades de comunicação que cada um demonstrou.

ÉPOCA – Eles se emocionam?
Carvalho-Filho – É espetacular. É a redescoberta da pureza. Olham para mim e perguntam: “Quer dizer que médico pode chorar? Não preciso virar um robô?”. Claro que médico pode chorar. Às vezes, uma lágrima expressa mais que qualquer palavra. Os alunos adoram a atividade. Fazemos das 14 horas às 18 horas. Tem dia que ficamos até às dez horas da noite. Não querem ir embora. Preciso dizer que tenho filho me esperando em casa.

ÉPOCA – É possível treinar a empatia?
Carvalho-Filho – Empatia é a capacidade de se colocar no outro, de entender o outro e ajudá-lo. Alguns estudos sugerem que há um componente cognitivo nessa história — algo que pode ser ensinado e praticado. Mas acredito que o lado afetivo também pode ser treinado. Ensinamos relação médico-paciente com recursos das artes, da poesia, da música, do teatro. Na Unicamp, esse curso faz parte do currículo obrigatório do primeiro ano. Na maioria das faculdades, há uma disciplina de habilidades de comunicação. Ensinam que o médico deve dizer “bom dia” e olhar nos olhos do paciente.

ÉPOCA – Isso basta?
Carvalho-Filho – De jeito nenhum. O aluno precisa perceber que o médico é um especialista na espécie humana. Tanto no lado afetivo como biológico. Falamos sobre técnicas de comunicação. Como eles devem começar uma conversa, como deixar o paciente à vontade. O que determina a boa consulta não é o tempo. É a capacidade de ouvir. Quando era estudante, passa visita no hospital, ia para um bar e só ficava falando sobre os pacientes com os meus amigos. Falava o tempo todo. É uma forma de elaborar as sensações. Queremos ajudar nossos alunos a aprender a amar esse amor. Se não aprende isso, faz uma medicina ruim. Não é fugir do sentimento. É aprender a sentir esse sentimento.
 
ÉPOCA – Está cada vez mais difícil encontrar um médico que tenha uma boa dose de empatia?
Carvalho-Filho – Se eu chegar à minha casa e perguntar quem teve uma experiência positiva com algum médico no último ano, vai ser aquele silêncio. Médicos que demonstram empatia são raros. Acho que sempre foram. A medicina deveria ser uma bandalheira quando o grupo de Hipócrates achou, lá na Grécia Antiga, que era necessário formalizar certas virtudes em forma de juramento. Hoje, falar em virtude virou tabu na nossa sociedade. O médico bem-sucedido é o médico valorizado pelo mercado.

ÉPOCA – Por tudo isso, a sociedade perdeu a confiança na classe médica?
Carvalho-Filho – Perdeu. Isso é ruim para a classe médica e para a sociedade. O paciente sofre duplamente: pela doença e pela falta de confiança. A situação de trabalho da maioria dos médicos está muito difícil. Baixa remuneração, falta de estrutura, acúmulo de empregos. Com tudo isso, o médico fica reativo. Surge uma série de conflitos nos serviços de saúde. Eles acabam explodindo no colo do paciente. Acho que se tivermos médicos mais preparados afetivamente, do ponto de vista humano, vamos conseguir proteger mais o paciente.

ÉPOCA – O que você chama de currículo oculto na medicina?
Carvalho-Filho – São algumas experiências informais que o aluno acumula na faculdade e que ajudam a moldar o caráter do médico. Boa parte do aprendizado de valores acontece nas festas, no bar, dentro do centro cirúrgico. Um exemplo é o trote. Estou feliz com toda a discussão sobre o trote. Esse debate precisa crescer. O trote é uma forma de perpetuar o poder que não tem nada a ver com o bom exercício da medicina.

ÉPOCA – Isso significa que o aluno chega bem intencionado à faculdade e vai sendo deformado ao longo do curso?
Carvalho-Filho – Na medicina, reproduzimos modelos. Que futuro médico nós teremos se ele vê o melhor cirurgião destratar a enfermeira corriqueiramente? As demonstrações de poder exercido de forma unilateral são modelos negativos. É a educação pela humilhação. Um professor que gosta de um aluno e, mesmo assim, o humilha ensina a esse aluno que a humilhação é uma forma normal de se comunicar. Esse futuro médico vai humilhar a secretária e o paciente.

(Cristiane Segatto)