Grupalizar é preciso!

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Tara Donovan

GRUPO: ESTRATÉGIA NA FORMAÇÃO

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Regina D. Benevides de Barros[1]

Já se tornou lugar comum chamar a atenção para as profundas transformações nas organizações sociais, nas relações de trabalho e na vida cotidiana provocadas pelas inovações tecnológicas. Tais processos alteram a cultura das organizações, as relações com os sindicatos e comissões de fábrica, os mecanismos de circulação e definição das redes de poder. Entretanto, não é apenas no plano molar – o das relações já constituídas-, como também no molecular ou micropolítico – o da produção da subjetividade -, que podemos acompanhar transformações importantes.

Toda tecnologia, bem sabemos, implica necessariamente, e talvez principalmente, relações sociais a se efetuar. Toda tecnologia implica, fundamentalmente, produção de subjetividade a se exercer.

Ao binômio novas tecnologias – novas formas de organização do trabalho acrescentaríamos, assim, os efeitos-subjetividade daí decorrentes. Consideramos ser crucial a aproximação com este campo de investigação, sob pena de nos paralisarmos frente aos processos de globalização da economia e o alarmante crescimento das taxas atuais de desemprego.

A criação de instrumentos e invenção de estratégias que interfiram no processo de produção e distribuição do que é produzido, bem como nas formas como o trabalho se organiza deve ser, portanto, alvo de preocupação daqueles interessados em contribuir para a formação dos trabalhadores.

Neste campo, várias experiências tem sido desenvolvidas procurando, cada uma delas, responder às peculiaridades de seu lugar e de sua época.

Na discussão sobre formação, quando referida aos processos de trabalho, têm-se focalizado as condições de trabalho ora como objeto de conhecimento, ora como lugar de experiência, ora como ferramenta de apropriação de saber e transformação.

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Uma dimensão quase sempre deixada de lado ou, na melhor das hipóteses, tomada como questão secundária deve ser, entretanto, destacada como fator fundamental na análise do processo de formação – a produção de subjetividade. Como se dá a interface  formação/produção de subjetividade/trabalho? Como o dispositivo grupal pode operar nesta interface?

 

A interface formação/subjetividade/trabalho

De um modo bastante simples poderíamos dizer que a formação envolve a aquisição de conhecimentos a serem problematizados, assim como a criação de novas questões. Tomada neste sentido, a aquisição supõe uma direta articulação com o cotidiano vivido (aquilo que se dá, por exemplo, nos locais de trabalho), tanto quanto com os demais movimentos sociais e políticos. As empresas modernas tendem a uma espécie de homogeneização de tais articulações colocando-as num continuum onde a força de trabalho fica enganchada numa subjetividade individualizada e unitária evacuada de sua capacidade desejante.

Se até a metade do século o projeto dos locais de trabalho, especialmente da fábrica, era o confinamento – “concentrar, distribuir no espaço, ordenar no tempo; compor no espaço-tempo uma força produtiva cujo efeito deve ser superior à soma das forças elementares” (Deleuze,1992,) -, o que vemos desde então, numa escalada irreversível, são mecanismos de controle em ação.

Isto, é claro, altera sensivelmente o modo como as subjetividades passam a ser alcançadas e produzidas. Nas empresas modernas (não mais fábricas…), o foco privilegiado não é mais o vigiar indivíduos, mas o estímulo à competição com aumento da produtividade. Maior eficiência e menor custo.

Algumas saídas tem se delineado a partir dos programas de formação. Tais programas se definem, em grande parte das vezes, pela relação entre o aprender e o ensinar. Isto, entretanto, pouco nos diz sobre eles.Temos acesso a seus conteúdos, às vezes a seus objetivos. É fundamental, entretanto, que possamos acompanhar o modo como serão operados tais conteúdos, como os objetivos se concretizarão.

 

Aprender é, então, operar sobre determinadas práticas de modos diferentes dos que se estava acostumado. É inventar outras práticas, fazer novas dobras no mundo. Nesta operação, outra dobra também se faz e, desta vez, ela se faz sobre si. O que estamos querendo dizer é que em todo processo de aprender não há apenas fatos a serem incorporados. As

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informações são fagocitadas, ingeridas, transformadas, produzindo-se, então, outras subjetividades, novas formas de estar no mundo.

As novas tecnologias, as novas formas de organização do trabalho estão, portanto, o tempo todo, operando novas formas de subjetividade.

Pensar a formação neste âmbito é ter que criar estratégias que possam colocar, coletivamente, em cena os territórios existenciais, o cotidiano no trabalho, as diferentes relações que estabelecem e as novas informações.

Assim também ensinar – o outro pólo do binômio ensino-aprendizagem – antes de significar “dar informações sobre um tema”, “mostrar sabedoria sobre algo que se considera importante transmitir”, define-se por possibilitar a apreensão de diferentes modos de conhecimento e pensamento.

Quando tomamos a interface trabalho/formação observamos que a melhoria das condições de trabalho foi, e na maior parte dos casos continua sendo, o principal alvo das reivindicações dos trabalhadores.

Beauchesne (1985), procurando responder à questão: “as condições de trabalho são objeto, lugar de experiência e de expressão e/ou ferramenta de formação?”, destaca três modelos de formação. No primeiro, a integração do conhecimento possui uma função tecnicista. Trata-se, segundo ele, de formar especialistas. As condições de trabalho são objeto de conhecimento. No segundo, o foco recai sobre melhorias no local de trabalho aliadas a uma vontade de reconhecimento dos trabalhadores expressas, por exemplo, através da criação de espaços de trabalho mais individualizados. O terceiro destaca as próprias condições de trabalho como ferramenta no processo de formação, tomando o conjunto dos trabalhadores como um grupo social sobre o qual uma ação se fará.

Seguindo sua argumentação, o autor acaba por concluir que, apesar das diferenças em termos de objetivos e lógicas, as condições de trabalho são ao mesmo tempo objeto de conhecimento, lugar de experiência e ferramenta de apropriação de saber e transformação.

Pensar a formação como referida à situação de trabalho implica, portanto, ter que levar em conta as condições de trabalho, as formas de organização dos trabalhadores, as relações com outras instâncias da sociedade civil, etc.

Mas, no que nos interessa destacar neste momento, temos que pensar em estratégias a serem utilizadas no processo de formação. Elas definirão, fundamentalmente, o modo como tal

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processo se fará. Elas engendrarão, por seu funcionamento, efeitos-subjetividades, dobras que alterarão as próprias condições de trabalho.

 

Grupo: estratégia e a produtividade e na formação

As experiências com grupos no campo das relações de trabalho datam de maneira mais expressiva da década de 20. Mayo, no rastro das inspirações tayloristas e fordistas, mas ao mesmo tempo tentando avançar na pesquisa sobre condições de trabalho e produtividade, focaliza suas experiências nas relações humanas. Retomemos alguns dos preceitos que antecederam Mayo.

Taylor começa a divulgar suas experiências realizadas numa indústria em fins do século XIX/ início do século XX (1895/1903/1905), nos Estados Unidos. Seus objetivos – o aumento da produtividade e o controle do trabalho – têm, como obstáculo, a redução do ritmo do trabalho imposta pelo movimento operário. Ele critica a organização e a direção da produção, mostrando que o ponto principal a ser modificado diz respeito ao lugar que o “saber-fazer” dos trabalhadores ocupa. O que isto queria dizer? Que havia um saber não sistematizado, não padronizado, transmitido oralmente através dos anos pelos trabalhadores e que eles mantinham para si. Esta iniciativa operária de manter secreto seu saber-poder era instrumento fundamental para sua preservação contra a completa exploração, estabelecida na relação capital-trabalho de então. Taylor, ao captar este nível de resistência, montou um plano que, segundo Athayde, se afirma em três momentos:

“(…) primeiro momento:… observando e registrando todos os gestos, movimentos do trabalhador no desempenho de cada tarefa, assim como dos tempos em que se operam. Constitui-se um mapeamento completo das tarefas, reduzindo o saber operário complexo a seus elementos simples… segundo momento: todos os movimentos sob domínio, pode-se então fracionar o ofício… pode-se suprimir comportamentos desnecessários…pode-se mesmo interferir com mudanças no lay out da empresa… terceiro momento: analisada cada fração… pode-se treinar rapidamente operários… para tornarem-se especialistas em detalhes…” (Athayde, M. 1988, p.76).

Taylor estabelece, então, quatro princípios que deveriam nortear a administração da fábrica: parcelamento do trabalho, treinamento de especialistas de detalhes, reformulação do papel de programação e controle do trabalho pela individualização, fixação de “tarefas” pré-planejadas pela direção, racionalizando ao máximo o trabalho operário.

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Segundo Athayde, o projeto taylorista de intensificação do trabalho, ainda que apresentando lacunas, abriu caminhos para a produção em massa, com a estandartização da ferramenta e dos procedimentos de trabalho.

Ford, contemporâneo de Taylor, desenvolve, também nos Estados Unidos, outros procedimentos que modificarão substancialmente os processos e a organização da produção. Além da padronização dos produtos e da produção em série, condições já encaminhadas pelas inovações tayloristas, Ford criará um sistema, em 1913, que trará enormes benefícios para o capital: a linha de montagem.
O princípio básico da linha de montagem é a diminuição do deslocamento do operário. Fixados a seus postos, o encadeamento do trabalho do operário é regulado mecanicamente, de forma exterior. Conforme observa, ainda, Athayde (1988. p. 85),

“a tendência presente no taylorismo para a desqualificação e fragmentação é levada ao mais alto grau, produzindo um novo tipo de homem, cuja única função é repetir indefinidamente movimentos padronizados, desprovidos de qualquer conhecimento profissional…”.

Com a intensificação do trabalho e sem a redução da jornada de trabalho, os lucros aumentaram enormemente. Frente às reivindicações de aumento salarial, foi proposta  uma forma mista de pagamento: uma parte fixa e a outra variável, ´como participação dos lucros´, desde que, é claro, todos estivessem de acordo com as regras estabelecidas pelo sistema fabril.

O momento seguinte ao das inovações tayloristas e fordistas, após a elevação dos lucros em face da racionalização do trabalho, é o desgaste da força de trabalho, a deterioração das relações entre operários, chefias e patrões, um aumento considerável da tensão nervosa, uma crescente irritabilidade e uma perda de interesse pelo trabalho (Athayde, M., 1988).

É aí que uma nova linha dos grupos se insinua. Em 1924, inicia-se uma pesquisa na Western Eletric Company, visando a alteração do quadro acima mencionado. O que está se implantando, neste momento, é uma sociologia aplicada às indústrias, com foco voltado para as “relações humanas”.

Mayo, professor de filosofia australiano, interessado na “psicologia do trabalho”, emigra para os Estados Unidos, onde dirigirá, entre 1926 e 1947, o Departamento de Investigações Industriais da Universidade de Harvard. Em 1924, como dissemos, a Western Eletric Company inicia uma pesquisa alterando as condições de iluminação de uma das sessões da Companhia. Alguns anos depois, o que os resultados apontam é para uma melhora no
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rendimento do grupo experimental mas, surpreendentemente, no grupo de controle também. Os dirigentes da empresa solicitam então a Mayo que desenvolva uma pesquisa mais geral para “entender” o que se passara.

A experiência de Mayo[2], desenvolvida em várias etapas, indica após todas as inclusões e exclusões de variáveis, que a melhoria das condições materiais do trabalho só desempenhou papel secundário e que o fundamental na determinação do aumento de rendimento tinha sido o fato dos membros do grupo testado terem se sentido como “partes de um grupo”.

“Torna-se então necessário descobrir um fator de rendimento que não havia sido, até então, considerado. Esse fator é o grupo” (Lapassade, G. [1974], 1977 p. 48).

“O resultado mais importante da pesquisa para a psicologia social, é a demonstração de que o indivíduo não reage frente às condições práticas do meio pelo que elas são, mas pela maneira como as sente e que, desta maneira, dependem em grande parte das normas e do clima do grupo em que trabalha ou vive e de seu grau de pertencimento ao mesmo” (Anzieu, D. (1971) p.55).

Mayo traz, portanto, novos pontos de inserção na constituição da instituição grupo. Este “aparece” como instrumento de solução para conflitos que ultrapassam os aspectos físico-ambientais detectados pelas propostas tayloristas e fordistas. Tratava-se do “fator humano”, o qual “escapava” das medidas cadastradas pelos inovadores da organização da produção. O trabalho com grupos se configura, então, como tecnologia a ser empregada especialmente frente a situações de conflito (nas indústrias, nas escolas, nas comunidades marginalizadas etc). Tecnologia que rastreia comportamentos “inadequados” e, ao estilo da psicologia positivista do século XIX, busca modificações visíveis e eficazes. Ao se construir como tecnologia produz, no mesmo movimento, “técnicos-especialistas” (coordenadores de grupo, animadores de grupo) que passam a gerir tais “espaços”.

Três décadas depois, cruzando diferentes referenciais teóricos, marcado por outro contexto sócio-político e, principalmente, criando uma nova concepção de grupo, Pichón Rivière chamará a atenção para o grupo como instrumento no processo de aprendizagem. Desta vez a relação com o aprender é definida com outros contornos, já que o aspecto inconsciente será a mola propulsora fundamental na constituição de avanços e resistências no contato com aquilo que se apresenta como o novo.

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É assim que outras linhas se cruzam na composição do campo grupal. Desta vez, é na América Latina, Argentina, onde Pichón Rivière faz convergir a microssociologia de Lewin, a psicanálise inglesa e a teoria da interação e da comunicação. Logo Pichón fará também confluir o materialismo histórico, preocupado com os mecanismos ideológicos de manutenção das estruturas sociais que interferem nos comportamentos dos indivíduos.

Pretendendo romper a dicotomia razão/afeto, já que considerava que toda tarefa contém em si múltiplos aspectos, múltiplas determinações; pretendendo romper igualmente a visão unilateral da ação do sujeito sobre o objeto, já que toda ação implica em modificação do objeto e do sujeito; pretendendo romper estereotipias frente à tarefa e à própria dinâmica grupal, que servem como defesas frente às ansiedades e que paralisam as trocas, Pichón cria a concepção do “grupo operativo”.

Considerava que uma equipe ou conjunto de pessoas só se estruturava enquanto grupo quando estiver operando sobre uma tarefa, de forma a garantir a abertura constante da espiral dialética estabelecida entre sujeito e objeto. Logo, o grupo estabelece-se pela tarefa que, por sua vez, se conforma pela estruturação do próprio grupo. O que está em jogo é o tipo de vínculo que se estabelece durante o processo de trabalho. O grupo operativo tem como função essencial aprender a pensar, isto é, desenvolver a capacidade de resolver contradições dialéticas, situações conflitantes manifestadas no campo grupal. A tarefa, o objetivo ou a finalidade tem a função de elemento disparador do processo grupal.[3]

A noção de “tarefa”, central nas colocações pichonianas, tem mais de um sentido. Ela tanto é o tema que “estrutura” o grupo, quanto é um dos momentos pelo qual passa o grupo no desenvolvimento do próprio tema. Assim, o grupo percorreria três momentos: o da pré-tarefa, momento de resistências, de impossibilidade de enfrentar o objetivo eleito com novas condutas, momento de reprodução de “velhos esquemas”; o da tarefa, momento em que o grupo efetua um “insight” em relação ao tema proposto, aborda e elabora as ansiedades; e o do projeto, onde se examinam estratégias e táticas a serem usadas para produzir mudanças que, pela espiral dialética, se voltariam sobre o sujeito, modificando-o.

Pichón assim concebe o grupo como “todo conjunto de pessoas ligadas entre si por constantes de tempo e espaço, e articuladas por sua mútua representação interna, que se propõe explícita ou implicitamente uma tarefa que constitui sua finalidade” (Rivière, p, 1971).

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O grupo não seria um todo formado por indivíduos isolados, há manifestações inconscientes destes indivíduos que emergem nas condições de grupo. Trabalhando com a análise das ansiedades básicas, o processo grupal levaria o grupo a apropriar-se do que supôs como tema na construção de um projeto (entrecruzamento do plano consciente, do plano inconsciente e do plano do sistema de relações, isto é, da estrutura grupal).

Pichón buscava ultrapassar a perspectiva funcionalista-mecanicista, marcante na “dinâmica de grupo” americana, descentrando os acontecimentos grupais do plano manifesto para o latente, não considerando tais acontecimentos como fenômenos em si, nem tendo como objetivo diminuir ou canalizar as tensões grupais.

Acompanhando as linhas grupais até aqui traçadas, podemos destacar que se em Mayo encontramos a crença de que o grupo é um elemento detonador de maior produtividade pela própria “natureza do estar em grupo”, em Pichón encontramos um grupo pensado como possibilidade de operar a realidade que não visa, a priori, dividendos e lucros, mas uma relação crítica  e dialética com o aprender.

Neste sentido, a formação, tomada como eixo, será formulada de maneiras bem diversas dependendo do modo como o próprio grupo é concebido: instrumento que facilita relações pessoais, produz vínculos e… aumenta a produtividade, ou instrumento que pensa os vínculos como atravessados por instâncias inconscientes e políticas e que se abre numa “espiral dialética” ao pensar sem objetivos pré-figurados.

Entretanto, devemos caminhar um pouco mais na formulação do grupo como estratégia de formação.

 

Grupo-dispositivo e Produção de Subjetividade

            Partimos do entendimento de que a noção de trabalho cobre dimensões  tanto objetivas quanto subjetivas. Mais ainda, acreditamos que tais dimensões se atravessam já que emergem num regime de coextensão e coprodução.

Isto nos leva a postular não mais um dualismo do tipo subjetivismo (condições do homem) x objetivismo (máquina), mas uma relação do tipo agenciamento homem-máquina. Este continuum põe em adjacência processos de trabalho que são ao mesmo tempo de produção de bens materiais e de produção da subjetividade. São universos de valores que se produzem face aos movimentos de conexão entre máquinas as mais variadas: desejantes, técnicas, sociais…

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O que se processa é, então, uma interface maquínica que tanto produz dimensões políticas quanto dimensões desejantes. Aqui, a concepção de máquina, longe de ter um sentido reducionista, abre a possibilidade de criar novos universos de referências.

Quando dizemos produção de subjetividade estamos querendo apontar para seu caráter não natural, isto é, para os processos históricos de montagem das formas subjetivas. Nesta perspectiva, a subjetividade não se confunde com uma transcendência, um já-dado, um em-si, um já-aí. São processos que construirão certos objetos de interesse e conformarão modos de existir. Quando nos referimos, portanto, à produção de subjetividade, estamos tomando-a em seu sentido intensivo, isto é, enquanto maneira pela qual, a cada momento da história, prevalecem certas relações de poder-saber que produzem objetos, sujeitos, necessidades e desejo.

Neste continuum não mais se faz a separação economia libidinal/ economia política, já que tal separação acaba sempre servindo a uma reconstituição identitária, geralmente associada ao que é colocado como “metas a serem alcançadas” tanto a nível da produtividade-produto, quanto a nível da produtividade-relações interpessoais, quando se trata de funcionamentos do tipo “participação” (Mayo, por exemplo ou as “modernas” formas de gerenciamento japoneizadas).

Tomado por este prisma também o grupo será formulado de outra maneira. Como máquina que é, já que produz – movimentos, relações, subjetividades… -, o acento se porá em seu caráter aberto à criação, aberto à novas conexões.

Para o grupo não caberão mais definições do tipo “conjunto de pessoas”, mesmo que reunidas por um certo tempo em torno de certos objetivos comuns. Não caberá mais também a suposição de uma unidade garantida pelo “mais que a soma das partes”.

O grupo-dispositivo, máquina aberta à diferença, é tomado como um dispositivo – algo que faz desencadear um processo de entrecruzamento, composição e decomposição, de redes sempre coletivas (múltiplas) e singulares.

A noção de singular escapa da equivalência ao individual. Esta última, franqueada pela doutrinal liberal, tem ganho há alguns anos uma “nova roupagem”, associando-se à ideologia privatista de indivíduos que devem progredir e ter sucesso por seus esforços pessoais. A visão de grupo, quando entendida por esta mesma lógica, define-se pela busca de uma identidade grupal, querendo apaziguar conflitos em nome de uma harmonia “produtiva para todos”.

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A noção de singularidade não se esgota nas composições unitárias e identitárias. Ela circula nos espaços da multiplicidade e da diferença ou, ousaríamos acrescentar, nos espaços públicos, no sentido que não podem ser explicados isolando-se dos processos históricos que os constituíram.

Uma visão de grupo que tome tais idéias não caminhará na dialética tese-antítese-síntese, já que o que se estabelece como critério de seu funcionamento não é a adequação entre objetivos pré-determinados e resultados alcançados, mas a valorização do PROCESSO vivido, onde pensamento-ação-afeto são co-extensivos.

Assim, o grupo, como estratégia de formação, se opõe à utilização do grupo como, simplesmente, mais uma técnica.

Colocá-lo como estratégia, como dispositivo de formação, é tornar adjacente a produção de conhecimento ao processo de produção de subjetividade.

Temos aí desenhada outra concepção de formação, onde não é mais a forma/ação o que se prioriza, mas as forças que instituem tais “formas”. É a processualidade, o inventar modos de “aprender”, o poder olhar o texto, o contexto e o fora do texto como fluxos que se atravessam constituindo formas, que ganha lugar de destaque.

É por isso que dizemos que a aquisição/criação de conhecimentos é adjacente ao processo de produção de subjetividade já que, num mesmo movimento, conhecemos “objetos” e nos produzimos como “sujeitos conhecedores” de tais objetos. Mais ainda, é o conhecer como processo que está em questão se desdobrando em sujeitos e objetos. O conhecimento é, portanto, efeito de condições histórico-sociais de cada época, condições que não apenas da ordem do conhecimento-em-si, mas das forças presentes numa determinada situação.

Pensar a formação como prática que engendra processos do conhecer é buscar a articulação do conhecimento com o nível político-social que o produz, mostrando que a oposição do verdadeiro com o falso é da ordem da moral.

Não se trataria, então, de tentar adequações do intelecto à realidade a ser conhecida, como se daí adviesse “o verdadeiro conhecimento”, “uma boa formação”.

Se o conhecimento é efeito, este se dá tanto sobre o objeto quanto sobre o sujeito. O conhecimento não se dá pela soma de diferentes perspectivas, pois o mundo não se apresenta de modo integrado, ele é processo. Sujeito e objeto constituem-se, então, na interação, na processualidade.

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A formação, ao ser tomada como prática, é entendida como produto de forças em luta permanente, configurando determinadas condições socio-político-históricas. A crença nos objetos de conhecimentos-já-dados ou nos sujeitos-já-constituídos dissimula o caráter heterogêneo das práticas. Cada prática tem como correlato certos objetos (certas formas de objetivação) e certos sujeitos (certos modos de subjetivação). As práticas e seus correlatos são, assim, construídos e datados.São heterogêneos e heterogenéticos, produtores de diferença.

Estamos, aqui, querendo chamar a atenção justamente para o caráter heteróclito das práticas e é aí que o grupo ganha outros contornos. Pois se anteriormente vimos um grupo-todo pautado nas “boas relações – maior produtividade”, se vimos um grupo-espiral dialética pautando-se em mecanismos ainda marcados pela divisão dentro-fora, interno-externo, estamos agora diante da possibilidade de pensar um grupo-dispositivo, acionador de movimentos que podem ir em várias direções, atravessando as fronteiras marcadas pelas dualidades (dentro-fora, interno-externo, história pessoal-história do grupo).

Será a diferença, enquanto potência de diferir, que provocará mudanças, que incitará o dobrar-se em novas práticas, em novos objetos, em novos sujeitos.

Grupo: estratégia na formação como aposta na diferença.

Referências Bibliográficas

ANZIEU, D. Dinâmica de los grupos pequeños. Buenos Aires, Kapeluz, 1971.

ATHAIDE, M. Processo produtivo, espaço educativo; um campo de lutas. Dissertação (Mestrado) – UFPB, João Pessoa, 1988.

BEAUCHESNE, M. N. La Formation; conditionnement ou appropriation. Bruxelles, Ed. Université de Bruxelles, 1985.

DELEUZE, G. Conversações. Rio de Janeiro, Ed. 34, 1992.

FERNANDEZ, A. M. El Campo Grupal;notas para uma genealogia. Buenos Aires, Nueva Vision, 1989.

LAPASSADE, G. Grupos Organizações e Instituições. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1977.

PICHÓN-RIVIÈRE, E. El Processo Grupal; del psicoanálisis a la psicologia social (I). Buenos Aires, Nueva Vision, 1971.

RODRIGUES, H et alli – Grupos e Instituições em análise. Rio de Janeiro, Rosa dos Tempos, 1992.

[1] Psicóloga, Professora do Departamento de Psicologia da UFF, Doutora em Psicologia Clínica (PUC/SP). BENEVIDES-DE-BARROS, Regina Duarte. Grupo: estratégia na formação. In: ATHAYDE, Milton et al. (Orgs.). Trabalhar na escola? “Só inventando o prazer”. Rio de Janeiro: Ipub-Cuca, 2001. p. 71-88.

[2] Esta experiência pode ser encontrada em LAPASSADE,G [1974], (1977) e em ANZIEU, D. (1971). Também em ATHAYDE,M (1988), RODRIGUES, H. et alli. (1992, p.176) e FERNANDÉZ, A.M (1989) há importantes referências à experiência em questão.

[3] Vemos aqui que o termo operativo alinhava vários sentidos: operativo-pragmático, útil; operativo-cirúrgico,  aquele que “extrai” algo; operativo-relaçðes de trabalho, que constitui trocas.

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