Razões Errantes

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Uma realidade reiteradamente negligenciada e óbvia é o fato de que agimos a partir de motivações diversificadas. Uma mesma ação se encaixa em uma série de racionalizações. Em uma parte das vezes, estão inseridas em uma cadeia complementar de razões. Em outras vezes, essa cadeia de razões é contraditória.

Podemos cuidar movidos pelo desejo de efetivar a potência inerente ao cuidado, algo tido como a realização de uma vocação. Simultaneamente, o trabalho de cuidar pode ser um degrau, na jornada anual que nos levará, durante as férias, a conhecer outro país. Ou ainda, sermos reconhecidos pela presunção de heroísmo que leva as pessoas a nos reconhecerem como trabalhadores especiais. Uma razão não nega as outras; e ambas flutuam em nossa mente como sentidos que nos ajudam a seguir em frente em um cotidiano extenuante e gratificante de trabalho.

Também podemos abrigar outras razões, contraditórias entre si, para explicarmos o curso de nossas ações. Uma certa alegria mórbida e cruel pode conviver ao lado da compaixão, empatia e solidariedade quando cuidamos de pessoas doentes. Similarmente, podemos elaborar o trabalho com o cuidado como um destino adequado para uma autoimagem depreciativa que tenhamos adotado ao longo da vida.

Pode ser que em uma mesma pessoa todas essas racionalizações encontrem lugar, conforme o momento e o grupo em que a pessoa se veja na situação de enunciar seus motivos para ser um trabalhador da saúde. A legião de fragmentos identitários que precariamente se estabilizam na síntese que nos define é um enigma que quanto mais explicamos, mais se torna um mistério insolúvel.

Os sentimentos e os estados de espírito (as inquietações que nos afetam) respondem a padrões elétricos mediados por substâncias químicas em nossa mente. Mas isso não reduz o universo pensado, a mecânica tridimensional que é acessível para nossa observação. A relação da consciência com a passagem do tempo permite que tenhamos um vislumbre do tecido do espaço tempo que se integram numa quarta dimensão existente, porém inacessível a nossa percepção.

Em delírios de febre, nos sonhos agitados, na meditação poética, na extrema concentração da batalha, ou no exercício dos dons artísticos, vivenciamos um descolamento das amarras do tempo. O estado alterado de consciência, as experiências de quase morte marcam no limiar de nossa cognição: A última fronteira do que pode ser pensado.

É assim que os trabalhadores da saúde vivenciam seu cotidiano de zelar pela vida: Numa proximidade quase tóxica com as contradições que nos definem e inquietam. Diferentemente das demais atividades humanas, a naturalização de nossas crenças exige um endurecimento do coração. Do mesmo modo que manter-se sensível e empático, exige que paguemos o preço da lucidez.