A Tenda do Conto e a Política Nacional de Humanização

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Julia Harrison – https://highlike.org

 

A PNH é uma política diferente das outras pois não tem portarias, leis ou protocolos instituídos da mesma forma como as outras políticas de saúde. Ela busca interferir nos modos de produzir saúde tensionando o plano concreto das ações, as práticas cotidianas. Ela vai acontecer exatamente no chão dos equipamentos de saúde, ou seja, na relação entre gestores, trabalhadores e usuários. Seus princípios, diretrizes e dispositivos se criaram e se reconfiguram aí. Suas estratégias para lidar com as questões nascem nessa relação. E buscam lidar com relações de poder, trabalho e afeto. E de que forma?

A Tenda nos ajuda a pensar esta forma:

Ela coloca em cena os saberes do cuidado de si e dos outros que se misturam aos saberes técnicos e científicos para compor o próprio campo do cuidado em questão. O que é isso? É dizer que as pessoas tem um saber tão importante quanto o do profissional de saúde e que é preciso dar voz a outros modos de pensar que estão fora dos protocolos tradicionais.

Ali vai se construindo uma outra realidade que amplia imensamente a clínica. Essa é, em poucas palavras, a diretriz da clínica ampliada. E isso não é pouco se considerarmos os tempos que vivemos hoje.

E como a tenda faz?

Colocar em cena a história oral, sob a forma de narrativas de vida, é trazer à tona um outro mundo que fica enclausurado sob os protocolos de saúde. É fazer desvios estratégicos que deixam passar a vida, soltar uma dobra do tempo que nos liberta para outros devires. Nela se dá uma espécie de reencantamento do viver.

É exatamente o que nos falta hoje: linhas de fuga criativas como essa. Estamos vivendo tempos sinistros, onde a individualidade impera. E onde somos levados a sofrer solitariamente, numa espécie de exílio interior, que nos separa do outro. Ou nos entregamos a todo tipo de medicalização, pois temos hoje à nossa disposição todo tipo de remédio para todo tipo de sofrimento. O que não deixa de ser um exílio também, pois passamos a acreditar que o que nos trata são apenas os medicamentos. Perdemos um pouco a dimensão do protagonismo na busca dos caminhos para a cura ou o bem viver.

Quando a única regra da tenda é a escuta e o silêncio, resgatamos uma dimensão perdida do respeito à fala e a liberdade de se colocar sem que outro discurso, supostamente mais "qualificado", venha a se interpor ao nosso.

Os que ouvem se identificam com as histórias e vivenciam as suas próprias neste mesmo espaço-tempo da tenda. A troca se dá pelo contágio com a história do outro. E vemos que não estamos sós, ao contrário, há muito de comum ou de comunidade em vidas que ali se cruzam.

Esse modo-contágio é uma das estratégias da política, buscando a composição no lugar da exclusão ou imposição de algo de fora do plano de construção dos modos de cuidado.

A tenda produz a inclusão da singularidade, nome complicado para muitos, mas que é muito simples e potente nas práticas. É saber que é preciso trazer as diferenças entre as pessoas pro centro da cena, pois aí reside a força e a possibilidade dos tratamentos efetivos.

É aí onde cuidadores e cuidados se acoplam, produzem juntos as saídas pros impasses. Aqui podemos incluir o projeto terapêutico singular, que é mais um dos dispositivos da PNH e que se constrói nessa parceria entre cuidadores e cuidados.

Isto é humanizar as diferenças e não negá-las ou transformá-las em sintomas.

A experimentação estética feita por intermédio da tenda é também um grande dispositivo para essa postura ética e política de cuidado ampliado – exercício de liberdade e autoria/protagonização a partir de ações que alcancem a integralidade de indivíduos e populações.

Outro dispositivo que pode ser incrementado pela tenda é a educação permanente. A sensibilização das equipes de saúde na relação com os usuários, quando participam junto com eles do processo produzido pela experiência Tenda.

Vale lembrar de mais um dispositivo que é a criação e efetivação de Projetos de Articulação de Talentos nos Serviços, por meio da ativação de práticas pela via da arte e cultura.

 

Depoimentos:

" A oficina foi libertadora. Colocar para fora o que sentimos é, muitas vezes, um desafio em meio a tudo que nos oprime. Que bom ser escutada! Que bom ser acolhida! Que bom ter estado aqui. " Obrigada, Sanay. Tapiri do conto, Amazonas.

https://redehumanizasus.net/62425-tapiri-do-conto-do-amazonas

Quisera eu ter todas as respostas para a afirmação que comecei (no título), mas posso dizer que vivemos todos muito mais … curtindo essas relações de bons afetos. Talvez esteja aí o cerne da questão: que saúde é esta? Falamos tanto, desejamos muito… ter saúde e saúde para todos. Esses "cantinhos" perderam-se no mundo frenético que ajudamos a construir, inclusive. Ficamos pelos cantos, à margem no nosso próprio mundo. No entanto, a perspectiva da tenda nos possibilita ver de ângulos diferentes, aproveitemos essas margens!!! Protagonismo de histórias de vida, autonomia de gerir seu futuro – suas escolhas. Acolhimento? Quem acolhe quem? Temos tanto a aprender com esses vínculos!!! A vida é uma boa estrada, o rumo a gente escolhe e curte a viagem… quem sabe disso! Quem dera um dia eu pendurar na porta da minha sala: "Não atendemos doenças", fomos viajar! (Luciane Réggio Martins, São Sepé, RS )

https://redehumanizasus.net/8500-grupos-de-educacao-em-saude-em-cantinhos-de-contos-sao-sepe-rs

 

Tenda do conto adoro  a experiência da tenda do conto, me lembra da calçada da minha mãe lá no sertão. Casinha simples, que a noite acolhe um "bocado" de gente na calçada e tome estorias…..sai  café, bolo , tapioca… e Dona Nasinha  do alto dos seus oitenta e cinco anos participando, acolhendo , dando "carão". É a terapia na calçada… assim também é a tenda do conto.

https://redehumanizasus.net/67028-tenda-do-conto-encantando-o-brasil
por jussara paiva

Em comentários e apresentações de trabalhos acadêmicos sobre a Tenda:

Segundo o psicanalista e escritor Rubem Alves: “De todos os sentidos, o mais importante para a aprendizagem do amor, do viver juntos e da cidadania é a audição”.

Já Jorge Amado, em sua obra Os Pastores da Noite, diz: “Com o povo aprendi tudo quanto sei, dele me alimentei e, se meus são os defeitos da obra realizada, do povo são as qualidades porventura nela existentes”.

Diante desses dois pensamentos, a Tenda do Conto surge como a agulha do tricô ou os pregos do tear, permitindo a junção da cultura popular com a arte de escutar, através da vazão dos sentimentos. Tais emoções florescem das lembranças, que como fios vocalizados, nos unem mediante as histórias e singularidades de cada um ( Gabriela Dantas ).

https://redehumanizasus.net/59508-tecendo-vinculos-pelos-fios-das-lembrancas-a-tenda-do-conto

A redehumanizasus.net, como um celeiro virtual de experiências de vida e práticas de um SUS que dá certo, pode ser vista também como uma imensa tenda para todos os usuários, trabalhadores do SUS e aberta para qualquer um que dela queira participar.

Jacqueline, a criadora da tenda, comenta em um post da RHS:

Um presente inesquecível que marca o aniversário de seis anos da Tenda do Conto.
Como traduzir a emoção? Fico aqui experimentando  o sabor das palavras de vocês, as ideias, pensamentos, os olhares que tanto acrescentam a nossos percursos.
Queria que a minha voz embargada e tímida tivesse a força, a delicadeza e aquele brilho de todos os narradores que salta aos olhos e incendeia nossas vistas. 
Queria ter dito que quando falamos sobre a Tenda para os estagiários, visitantes, professores, convidados, em todos os lugares que percorremos, ressaltamos com orgulho: está na redehumanizasus!!!
que sem a RHS, essa história possivelmente não seria contada assim, com tantas vozes e nem estaria sendo reinventada todos os dias.
que os posts impressos já amarelados e fixados nas arupembas representam uma RHS cada vez mais viva e presente nesse percurso;
que a RHS se oferece como um ventre aberto para que as vozes dos contadores que sentam na cadeira da Tenda do Conto, ganhem o mundo
que sinto a presença de muitos companheiros da RHS em cada tenda montada e nas histórias contadas: nessa constante novidade que é a vida!
Nesse tempo de escutar, experimentar o gosto do outro, as palavras me fogem…

https://redehumanizasus.net/66079-o-intercessor-tenda-do-conto

 

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