Hotel e Spa da Loucura/Onde a arte se hospeda: “Evoé!”

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Vitor Pordeus e artistas do Norte Comum falam sobre a ocupação no Hotel da Loucura.

A Celebração da Loucura invade as ruas do Engenho de Dentro.

Concentração no Hotel da Loucura para o cortejo da Celebração da Loucura…

 

Sabe quando a gente encontra algo que encaixa, achando até uma certa loucura essa sensação… de que podemos mais, andar melhor na vida, misturarmos mais as vidas, sem saber quem é o louco da vez… Fiquei encantada com este texto da Renata, e com todo o trabalho do Engenho de Dentro, do Nise da Silveira, do Hotel da Loucura, da UPAC ! E, experienciar isso na tenda Paulo Freire já deu uma amostra, conto o tempo para viabilizar esse encontro lá no RJ… e Ocupar o Nise também na próxima vez… 

Há muito de invensão, possibilidades, a arte viva no corpo e na alma desses "atores". Atores da vida. E, a arte possibilita as passagens desses afetos, emoções que nos misturam… quanta vida é possível? E por que só alguns teriam direito a ela em liberdade? A diferença é de qualquer um. Muros e grades, nesses tempos, como a Renata inicia… 

Não há nada mais humano do que estar com o Outro. Deixar-se atravessar por essa diferença, arrepiar-se na emoção do que passou… E se não houver jeito, fazer um poema (como outro já disse), um post, cantar, cirandar, sorrir, abraçar, dançar e por alegria nesse encontro… 

Arte da vida, arte viva, arte dos encontros…
 

Compartilho com emoção, o texto da Renata Saavedra:

"Bem vindo ao Hotel da Loucura" – com direito a recepção sorridente de Fabiano, um dos "clientes" do espaço.

 

Em tempos de grades, quem chega no Instituto Municipal Nise de Silveira estranha o acolhimento que recebe. No imponente prédio da enfermaria, é só subir as escadas pintadas e o caminho se apresenta: “Vai entrando e perguntando”, convidam as paredes poéticas, cheias de bons auspícios, falando de cura, afeto, beleza, luta, cidade, amor. “Bem vindos ao Hotel da Loucura”. A casa está aberta a todos: médicos e pacientes do hospital psiquiátrico, músicos, atores, artistas plásticos, produtores culturais e quem mais quiser engrossar o coro orquestrado pelo médico e educador popular Vitor Pordeus, que coordena as atividades no espaço mostrando que arte e ciência caminham juntas: “Todo ser humano é criativo e curioso, todo ser humano é artista e cientista. A arte é o bem fazer, a ciência o bem saber. Não há uma sem a outra, nem a outra sem a uma”.   

Nascido e criado em Realengo, Vitor Pordeus se formou em Medicina, realizou pesquisas em universidades brasileiras e em Israel até que, quando desenvolvia sua tese de doutorado na Universidade de São Paulo, foi expulso “por conflitos científicos e filosóficos”. “Nesse momento decidi estudar teatro e aí deu certo, pois me reaproximei da ciência, da medicina, da saúde pública. No fim de 2008, o secretário municipal de saúde Hans Dohmann me convidou para criar a pasta de saúde e cultura na secretaria municipal. Criamos o Núcleo de Cultura, Ciência e Saúde, os Agentes Culturais de Saúde, as Escolas Populares de Saúde, a Universidade Popular de Arte e Ciência, o Teatro de DioNises e o Hotel e Spa da Loucura nessa caminhada de cinco anos”.   

 

Todo mundo é ator   

O Hotel e Spa da Loucura, que ocupa o terceiro andar da enfermaria do Instituto Municipal Nise de Silveira, é a sede da Universidade Popular de Arte e Ciência (UPAC), uma rede de formação de agentes de cultura e de saúde inspirada nas ideias de Nise de Silveira e Paulo Freire, entre outros mestres, que explora a junção entre arte e ciência em busca de uma vida mais saudável. No 2º Congresso da UPAC, o Ocupa Nise, que aconteceu em 2012, o Hotel da Loucura recebeu seus primeiros hóspedes: educadores populares em saúde, artistas de rua, pesquisadores e pensadores interessados na luta antimanicomial e na cura por meio da arte. “Primeiro realizamos em julho de 2011 o primeiro congresso da UPAC no Teatro Carlos Gomes, obtivemos enorme sucesso trabalhando linguagens múltiplas com teatro, poesia, música e outras manifestações. Daí decidimos que no próximo congresso comporíamos um espetáculo, que precisávamos de três semanas, e aí me veio a ideia de fazer no Hospício, tudo graças a Nise da Silveira que tem sido uma presença fascinante e constante em nossas vidas desde nossa visita ao preciosíssimo Museu de Imagens do Inconsciente”.   

O Hotel da Loucura tornou-se assim sede da UPAC e trabalha de portas abertas desde então. “Deu certo e continua crescendo. Já realizamos outro congresso Ocupa Nise em 2013 que foi absolutamente terapêutico e transformador, durando sete dias, que foi uma fórmula alquímica de trabalho em que chegamos”. Assim nasceu também o Teatro de DioNises, que em 2012 encenou O Auto da Paixão de Nise da Silveira e, em 2013, o espetáculo DioNise-se!. O médico realiza oficinas de teatro no espaço que reúnem em média 30 pacientes – ou “clientes”, como são chamados no Hotel. Vitor destaca que, no Hotel da Loucura, todo mundo é ator. O Hotel conta com nove quartos com beliche, espaços para reuniões, sala de meditação, de jantar, ateliê e biblioteca. A hospedagem de profissionais é gratuita – a contrapartida é uma contribuição criativa do hóspede, seja uma produção cultural externa que dê visibilidade ao projeto ou um trabalho com os próprios pacientes.   

 

Sempre cabe mais um, ou dois, ou mais

A família não demorou a crescer: “O Hotel foi criado para abrigar um coletivo de artistas, pesquisadores, cientistas, educadores, pajés, mães-de santo, médicos entre outros, daí que entrou o Norte Comum com os Irmãos Meijueiro e um timaço de artistas interessantes e interessados que têm feito um trabalho muito impressionante e de alta qualidade na ocupação progressiva do Hotel da Loucura, que desde o início do ano duplicou sua área ocupando outra enfermaria abandonada”. O Norte Comum, rede de artistas da zona norte do Rio que busca estimular a produção cultural da região, foi o primeiro coletivo artístico a adotar o espaço como sede. “Ocupamos o Hotel da Loucura, onde antigas enfermarias do antigo hospício do Engenho de Dentro foram transformadas em espaços de convivência e de criação, tendo a cultura como remédio e a arte como possibilidade”, diz Pablo Meijueiro, um dos criadores do coletivo. A TV Caiçara, voltada para a exibição de produção audiovisual brasileira independente, é a mais nova inquilina. “Estão trabalhando hoje no Hotel da Loucura: usuários do SUS da rede psicossocial, pacientes internados nas enfermarias psiquiátricas vizinhas, os Agentes Culturais de Saúde, o Norte Comum, o Teatro de DioNises, a TV Caiçara, além de médicos residentes e estudantes de medicina, enfermagem e psicologia”, enumera Vitor.   

Os grupos realizam suas reuniões no local, fazem intervenções artísticas e participam da animada agenda da Loucura: toda segunda tem Cine Sol, o cineclube local; terças e quintas são dias de oficinas (de ação expressiva, com teatro de rua, dança e música, e oficina dialógica de som) e sextas, de passeio externo com os clientes. E há também os “eventos de gala”: todo mês tem Sarau TropiCaos e, quinzenalmente, às quartas, acontece a Celebração da Loucura, um cortejo que canta pelos pátios do Instituto Nise da Silveira, ocupa a feira livre da rua Gustavo Riedel e leva seu espetáculo até a Praça Rio Grande do Norte, “coração do Engenho do Dentro”, nas palavras de Vitor. As cores e mensagens do Hotel da Loucura saem do Instituto e convidam todos a serem atores pelas ruas do bairro. “Saúde não se vende! Loucura não se prende! Quem tá doente é o sistema social!”, anuncia o bloco, com vocais e percussão afinados.   

Amauri Braga, agente cultural de saúde que atua no local, aprova a experiência: “Os clientes que não têm acesso ao Hotel têm mais dificuldade de se comunicar. Há um sistema aqui chamado pátio livre, que permite que alguns pacientes frequentem as áreas comuns. Então a gente convida, vai em cortejo até eles e faz uma “farra” com dança e música para que venham trabalhar conosco. Percebemos uma grande melhora nos pacientes que participam, inclusive em matéria de comportamento. Temos por exemplo aqui uma cliente externa, que faz tratamento no hospital mas vai para casa todos os dias. Ela coopera nas nossas festas e eventos. Ela era muito agressiva, vivia discutindo, agora está bem mais tranquila, já fez inclusive uma viagem com o Núcleo, e ela mesma reconhece isso”.    
O agente cultural destaca que, além das atividades internas, há ações realizadas pelas Escolas Populares de Saúde: “Elas fazem o envolvimento da comunidade com o trabalho que é efetuado aqui – não necessariamente voltado à deficiência mental, mas qualquer problema, principalmente em relação à aceitação do outro, do diferente, e para despertar na pessoa que está lá fora a certeza de que ela pode produzir cultura, de que ela tem dentro de si um espírito criador que pode gerar várias coisas”. Amauri, servidor da Secretaria Municipal de Saúde, atuava como agente de controle de endemias quando Vitor Pordeus, que passou a coordenar o Núcleo de Cultura, Ciência e Saúde, em 2009, fez o convite para as oficinas de formação dos Agentes Culturais de Saúde. Assim como Amauri, Eduardo Rocha também trabalha como agente cultural no Hotel Loucura: “Nós fazemos um trabalho de educação popular e saúde com artistas de rua, poetas, etc, inclusive de outros estados. A UPAC tem a sede no Rio, mas tem núcleos em São Paulo, em Belém, em Aracaju e em Fortaleza”, diz.   

 

Cem anos de loucuras   

O Instituto Nise da Silveira é o antigo Centro Psiquiátrico Pedro II, que foi criado em 1911 com o nome de Colônia de Alienadas do Engenho de Dentro para receber um excedente de mulheres internas do primeiro hospício do Brasil, o Hospício de Pedro II, que funcionava na Praia Vermelha. Desde 1965, a instituição homenageia a médica que, na década de 1940, quando começou a trabalhar no local, recusava-se a aplicar eletrochoques em pacientes e empreendeu uma luta pela humanização no tratamento psiquiátrico. Nise criou ateliês de pintura e escultura e, com as obras resultantes, criou o Museu de Imagens do Inconsciente, inaugurado em 1952 no próprio Instituto.   

O Hotel da Loucura eterniza e multiplica o legado da psiquiatra, cantando sua filosofia e seu nome no espaço que ela revolucionou: “Entre nessa brincadeira, viva Nise da Silveira!”, brada o bloco que celebra a loucura. “Cada indivíduo é uma singularidade, cada grupo afeta e é afetado, dialoga, modifica, desenvolve, descobre, o ambiente do Hotel da Loucura é exatamente para isso. Nise diz: Cada louco é um artista, cada artista um ser humano, cada ser humano um universo”, diz Vitor. O retorno da multidão vem em uníssono: “Evoé!”.