Escuta

14 votos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Certo dia, em uma Unidade Básica de Saúde, realizei uma visita domiciliar juntamente com uma Agente Comunitária de Saúde (ACS), como de rotina. Já tinha contato com a história da comunitária a ser visitada, pois sua filha viera até mim relatar suas preocupações com o adoecimento de sua mãe.

Ao chegar para a visita, a senhora, de cabelos brancos, e aparência descuidada, abriu a porta e foi se sentando no sofá. Sua filha (que mora na mesma rua) acompanhou, e entrou na casa conosco. Sentei ao seu lado, me apresentei, e lhe perguntei como estava.

Tentava me falar de seu sofrimento, ao seu modo, desconectada, desorientada, repetitiva. E eu, tentava lhe ouvir, com atenção. Mas éramos interrompidas pelas queixas de sua filha, sobre toda a história da comunitária. Em seus olhos, via o apelo para que suas palavras fossem ouvidas.

A ACS, então, falou que estava surpresa, pois desde que foi morar na comunidade, esta senhora nunca havia lhe aberto a porta, para que o cadastro fosse feito, saber quais as necessidades desta. Tudo fora feito com a filha mais nova, que nem ao menos atenção à sua mãe, oferecia.

Aquela senhora não era olhada nos olhos, não tinha seu discurso acolhido. Tentei fazer isso, naquele setting improvisado, que faz parte da realidade do psicólogo na atenção básica. O setting é a relação.

Sua história trazia repetidos abortos, filhos nascidos mortos, crises, sintomas de depressão pós parto seguida de internações, e justificativas e diagnósticos incertos. Nunca fora ouvida, enxergada, acolhida. Viveu anos sem apresentar nenhum dos sintomas, após as internações, e ao primeiro grito de sua humanidade ferida, buscou-se a remissão dos "sintomas". 

Diante das circunstâncias, dei-lhe o que precisava: ouvidos, olhar, e minhas mãos. Ouvi com cuidado cada letra de seu discurso desconexo, mas muito coerente com a sua história. Lhe ofereci o que mais importava naquele momento: que as lembranças vivas fossem faladas, para, quem sabe, se organizarem. Mas o objetivo não era esse.

Muitas vezes precisamos falar, sem parar, do que nos incomoda. Imaginem alguém que durante toda a sua vida, não pode falar de suas dores e das situações não compreendidas. Agora, imaginem que em um dado momento, todas essas lembranças vem à tona, em forma de sintomas. Psicose ou não, Neurose ou não, estava à minha frente uma mulher. Marcada pelo tempo e pelas dores guardadas, com o olhar marcado, de quem suplica ouvidos para sua história. Naquele momento, desejei que a filha não falasse mais nada, que apenas deixasse a memória viva de sua mãe viesse, pois depois de muitos anos, vir à tona, com certeza tem uma carga afetiva muito maior implicada.

Empatia. Cuidado. Acolhimento. Humanidade. Naquele dia, saí da casa com essas palavras vivas dentro de mim. Me senti muito próxima daquela história, não por passar por algo parecido, mas por perceber que em meio a tanta precariedade, descuido, e falas tolhidas, aquela senhora clamava por minutos de silêncio, para que enfim pudesse falar de todas as suas angústias, ao seu modo.

Compreendi o meu papel (mais um deles – mais um que descubro no decorrer de minha prática) naquele momento, mas sobretudo como profissional, e na atenção básica. Muitas vezes as pessoas não precisam de orientações ou intervenções em suas dores, elas precisam de muito menos, que todos, profissionais ou não, deveríamos dar vez: humanidade.

Ouvir cada silêncio e cada queixa, organizados ou não, coerentes ou não, verídicos ou não. Relatos vivos, de memórias, fatos, gestos… De pessoas que vivem e que tem o direito primordial de serem humanas, como elas quiserem.

 

Magda Tavares de Albuquerque

Psicóloga do Núcleo de Apoio à Saúde da Família – NASF, no município de Vitória de Santo Antão – PE.

 

*Imagem meramente ilustrativa