RESSENTIMENTO E RESIGNAÇÃO NO TRABALHO EM SAÚDE MENTAL PÚBLICA: RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA EM CAPS II

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RESUMO
Trata-se de um relato de experiência referente a um ano e meio de trabalho em um CAPS II localizado próximo à cidade de São Paulo, SP. O autor participou do lento e atravancado processo de implementação e inauguração do serviço e assistiu aos diversos entraves em meio aos quais a empolgação e energia da equipe vertia em frustração e ressentimento. O texto representa um esforço de compreensão, problematização e repercussão da experiência vivenciada, em busca de meios através dos quais a saúde pública possa ver-se melhor implementada e representada.

 

INTRODUÇÃO:
Proponho nesse texto o relato de uma experiência por que passei atuando na Saúde Pública, em um CAPS II. Estive nesse serviço por um ano e meio, enquadrado como psicólogo contratado pela prefeitura, atuando trinta horas semanais, em uma cidade próxima a São Paulo. Já não trabalho mais nesse local.
O intuito de redigir esse texto foi se delineando ao longo de meus últimos meses de trabalho. Desde o primeiro dia encontrei desafios e entraves em minha atuação, que enfrentava e suportava como podia; conforme o tempo passava e sentia as limitações impostas pelas circunstâncias a minhas propostas e princípios de trabalho (e vida), sentia com urgência crescente a necessidade de circunstanciar minhas vivências no município em vista do enquadramento legal e histórico das práticas em saúde pública e saúde mental – se a práxis frustrava e angustiava, propus-me a ao menos reverter em testemunho e em “caso”, como oportunidade de pensar as políticas em vigência e em debate, buscando o desenvolvimento constante das políticas públicas.
Evidentemente uma experiência de dezoito meses à carga de trinta horas semanais possibilita a confecção de múltiplos relatos e recortes, e a massa de material a que poderia recorrer impõe escolhas para que o relato possa fazer algum sentido. Por outro lado, como disse, já era “acossado” durante minhas vivências pela necessidade de uma escrita que “transportasse” minhas experiências lá a outra intermediação e outro parâmetro, e por isso já “sonhava” essa escrita enquanto estava lá – nessa medida posso dizer que alguma escolha já se processava em mim à época. Atento à necessidade metodológica de um recorte e à forma como minha vivência “impôs”, ela também, um recorte, proponho modular a escrita pelo seguinte: o atravessamento da violência na contratualidade conforme esta se processa em um CAPS II.
Lembro, já de antemão, que esse recorte implica uma escolha, e essa escolha sacrifica necessariamente outros aspectos e dimensões da experiência, que não “cabem” ou competem à apresentação conforme a propus; poderia relatar bons encontros, bons grupos, atendimentos, reuniões – isso, no entanto, fica sacrificado em vista do imperativo de dar visibilidade a essa dimensão problemática da experiência. Espero que o leitor consiga compor o relato que segue à suposição de que tive também bons momentos, e que levo da experiência mais do que apenas trauma, rancor e frustração.

UM ANO E MEIO EM UMA CASCA DE NOZ
Não tinha em vista assumir de fato o cargo como psicólogo quando fui entregar a documentação; estava ocupado com outras atividades e não tinha interesse em contrair um compromisso tão demandante em termos de carga horária. Quando fui, tinha em vista simplesmente “conhecer a proposta”, como se fosse por desencargo de consciência. Quando soube que havia uma vaga para trabalhar na equipe que implementaria o projeto de um CAPS II no município, no entanto, fiquei interessadíssimo e resolvi aceitar.
A ideia, conforme foi transmitida, era que a equipe redigiria um projeto terapêutico para o serviço, conheceria a rede de atenção à população instalada no município, desenharia possíveis atividades e um fluxograma institucional e, em três meses, o serviço seria inaugurado.
Curiosamente, na mesma semana em que comecei a encontrar meus colegas de equipe estourou na mídia uma denúncia de desvio de verbas no município, implicando em prisões de secretários e vereadores, congelamento de verbas e todo o resto. Não sei se isso teve algum papel no desdobramento dos fatos, mas certamente impactou no tom que marcaria as discussões e o andamento do projeto. Logo percebi que não só meus colegas de equipe, mas praticamente todos na cidade sustentavam um tom de “indignação resignada”, inconformados com a corrupção, o populismo assistencialista e a apatia política do município; eventualmente me vi fazendo parte disso, sem que nunca tenha tido esse desejo ou tenha admirado essa postura que me parece improdutiva, rancorosa e desanimadora.
Quando começamos a trabalhar no projeto para o CAPS II ainda não dispúnhamos de um espaço físico para o futuro serviço – fazíamos nossas reuniões na Secretaria de Saúde ou em um parque nas proximidades. Intercalávamos discussões de projeto e perspectivas com a leitura de documentação oficial e de divulgação a respeito da Reforma Psiquiátrica, dos CAPS II e do SUS (a equipe era composta de profissionais com formações distintas, trajetórias distintas e interesses distintos, e nem todos tinham estudado ou trabalhado nesses campos). Éramos na época três psicólogos, duas assistentes sociais e uma terapeuta ocupacional, acompanhados frequentemente pela coordenadora de saúde mental do município (ela, também, psicóloga).
O clima, inicialmente marcado por discussões abstratas, genéricas e abertas, passou a ser crescentemente atravessado pelo ceticismo quanto ao projeto, incômodo com a precariedade do cotidiano de trabalho, cansaço pelas excessivas discussões e escassas ocupações. Os três meses logo passaram a ser pouco críveis como prazo para inauguração do serviço, e foram substituídos por outras datas e outros prazos – ao longo da trajetória tivemos muitos prazos e datas, e o serviço foi aberto apenas um ano depois da composição da equipe de base para a “escrita do projeto”. Com o encrispamento do clima na equipe arrefeceu ainda mais o ritmo das discussões e o andamento de eventuais combinados e pactuações; as reuniões passaram a ser menos produtivas, mais desgastantes e tensas. A própria ideia de se apresentar às oito da manhã com a perspectiva de passar seis horas em discussões com uma equipe sem grande afinidade e sem serviço prático até às duas da tarde contribuía em muito para irritar e desanimar, numa espécie de ciclo vicioso de animosidade e desânimo.
Eventualmente soubemos da definição de um espaço onde o CAPS II viria a funcionar – no lugar de outro serviço de saúde mental, este gerido pelo Estado, que fecharia suas portas em breve em virtude de contingenciamento de verbas. Fomos conhecer o espaço, os profissionais que em breve seriam dispensados, os usuários que em breve ficariam sem atendimento. Pensamos numa “passagem” de atendimento, com o CAPS abrindo assim que o serviço fechasse – isso, para bem ou para mal, não aconteceu, e passou-se muito tempo entre o fechamento daquele e a inauguração do CAPS. O espaço era um galpão de indústria, localizado no parque industrial do município, nos limites do território e no extremo oposto do centro e dos bairros mais populosos do município (o centro do município fica na outra extremidade, na divisa com São Paulo). A localização não favorecia muito o acesso, nem dos cidadãos ao serviço, nem do serviço à cotidianidade do município.
Os prazos venciam, novos surgiam, o tempo passava; as discussões ficavam cada vez menos produtivas, o cansaço era cada vez mais sintomático, cada vez menos trabalho se produzia a custos cada vez maiores. O desânimo grassava. Brincávamos que o galpão, pouquíssimo mobiliado e ocupado por oito profissionais (a essa altura contávamos com uma auxiliar administrativa na equipe) sem ocupação efetiva, parecia um experimento de psicologia social ou um reality show de mau gosto – as brincadeiras, na verdade, traziam pouco conforto.
Eventualmente (com cerca de seis meses de “trabalho” da equipe) pensamos que era tempo de alguma medida de contestação: propusemos, então, a confecção de uma carta aberta, a ser encaminhada a grupos e associações profissionais, relatando a situação em que estávamos e nosso incômodo com a situação bizarra; a bizarrice, que fique claro, consistia na existência de uma equipe composta, trabalhando, batendo ponto, remunerada, ocupando um prédio imenso, inapropriado para o uso esperado e não mobiliado, e nenhum atendimento sendo prestado à população. Desde o fechamento do serviço estadual tínhamos notícia dos antigos usuários perambulando entre UBSs e pronto-socorro, pleiteando renovação de medicação, atendimento emergencial, internação.
A proposta da carta aberta, no entanto, parece ter desagradado. Fomos “instruídos” a não escrevê-la, e considerou-se adequado que cada um dos profissionais da equipe do futuro CAPS fosse alocado em um serviço distinto do município; a proposta era que a “atenção psicossocial” começasse a funcionar independentemente do “centro” – seríamos profissionais do APS, enquanto o CAPS não vinha.
Resignados, fomos alocados em UBSs, CRAS, CAPSad; tínhamos projetos específicos de atuação; víamo-nos raramente, e sempre com pauta e supervisão. Assim ficamos por alguns meses, até que a abertura do CAPS II fosse iminente, momento em que fomos realocados no galpão, dedicando-nos a adequar o espaço (na medida do possível, visto que a mobília continuava escassa e os materiais terapêuticos e administrativos necessários haviam sido parcial e arbitrariamente supridos) e tirar o pó dos projetos e propostas escritos alguns meses antes; resignados, voltamos .
O serviço foi inaugurado em um domingo, a alguns meses das eleições municipais; eu não compareci, mas soube que se tratou de cerimonial eminentemente político. Seja como for, treze meses após a composição da equipe profissional inicial, pomo-nos em serviço. Conviviam fantasias contraditórias: poderíamos receber afluentes de pessoas procurando atendimento, como poderíamos seguir desapercebidos, no ócio avassalador do galpão, à espera de “pacientes”. O tempo foi trazendo cidadãos, aos poucos, ao serviço, e em pouco tempo passamos das lamúrias inspiradas pela sensação de vazio e falta de sentido àquelas inspiradas pelo excesso de demanda, falta de organização e tempo.
Todo o tempo passado entre a convocação da primeira equipe e a abertura do serviço não favoreceu a configuração de um serviço organizado e consistente: a administração era pouco eficiente, a organização dos profissionais e do manejo do espaço e do tempo eram precários, a comunicação era ineficiente e trabalhosa. Parte da responsabilidade se deve sem dúvida à inconsistência do próprio projeto: a equipe que começou a pensar era pouco representativa (seis profissionais dos doze que vieram a compor a equipe que “inaugurou” o CAPS), não contávamos com diretrizes ou apoio consistente, não tínhamos coordenação própria e eventualmente percebemos que os médicos decidiriam quase tudo – e não havia médicos no período de “gestação” do CAPS, eles só chegaram depois de inaugurado o serviço. Além disso, o desgaste do período pré-inauguração precipitou a saída de alguns desses profissionais da primeira equipe – eu, tendo saído seis meses após a inauguração, fui o terceiro dentre os seis iniciais, e soube da saída de outros dois logo depois de mim.
O cotidiano de trabalho após a abertura do serviço era marcada pela precariedade: tínhamos pouco ou nenhum material, o espaço era ruim (como disse, um galpão industrial – sem divisórias, poucos banheiros, feito de concreto e zinco, o que fazia com que esquentasse demais no calor e esfriasse demais no frio), a equipe estava bastante desmotivada, a rede de atenção municipal nos via com maus olhos e as relações no geral eram ruins; a precariedade do próprio município e da população que nos buscava estabeleciam um continuum com a do próprio serviço.
A essa altura, pouco ou nada restava de minha animação e alegria quando assumi o desafio de “propor o projeto” e instalar um CAPS II; ressentia-me, sentia-me sem motivação, sem recursos. Procurava alternativas, recursos, caminhos; propunha dispositivos institucionais, pautas, reuniões, organizações, oficinas, debatia-me, e o desânimo não desgrudava. Em algum momento comecei a sentir que procurava tão aflitamente um caminho que refletisse meus ideais e crenças por puro egoísmo – parecia que a população, os profissionais e os administradores estavam bem estabelecidos no tal assistencialismo populista, todos devidamente confortáveis em seus lugares de miseráveis, corruptos, insatisfeitos, requerentes de privilégios e tantas outras funções estereotipadas. Esse entendimento me parece amplamente estimulado pelo rancor, e pouco preciso; parece-me, no entanto, que o propósito de inauguração de um CAPS II no município tinha muito mais fundamento pelo financiamento ministerial  consequente do que pela pertinência da instalação de um serviço como este para o atendimento à população, pela adequação da proposta. Em muitos momentos senti que a lógica municipal – considerando abstrata e um pouco toscamente a história política e a circulação dos cidadãos – aderiria muito melhor a um “ambulatório” com gestão centralizada e controle de produtividade; não que eu defendesse ou gostasse dessa ideia, mas o rancor me fazia ver a cidade com olhos reacionários.

A SAÍDA E O LEGADO
Nos últimos meses de trabalho – já havia decidido pela saída – passei a gravar “audiologs”, que eram gravações em áudio que eu fazia em meu celular sobre o andamento do trabalho, os pensamentos que eu nutria a respeito, hipóteses que levantava e relatos de cenas e situações. Certo dia me peguei gravando: “parece que minhas propostas e desejos para o funcionamento do serviço não condizem em nada com a organização local; profissionais não acompanham, usuários não se interessam. Posso ter a certeza que tiver a respeito, não vejo lógica em defender a ferro e fogo alguma coisa que me parece correta, porque ‘estudei e sei’, se nada na realidade em que me insiro reitera essa certeza íntima. Se o papel do profissional em saúde mental tem como fundamento a intervenção em vista da realidade local e dos desígnios da comunidade em vista de sua colocação e pertinência, eu preciso confessar que simplesmente não tenho lugar aqui”.
Não sei se sustento essa posição; o que sei é que minha saída não foi motivada pela precariedade de recursos ou pelo grau de dificuldade do trabalho, e isso me parece claro. Por vezes compartilhava minhas dificuldades locais com colegas, e ao cabo de minhas lamúrias estes diziam: “ora, pelo que você está dizendo você está certo em querer sair”, porque pensavam que falta de materiais, de cumplicidade no trabalho, de respaldo em alianças e pactuações com outros serviços locais, essas dificuldades justificam a saída. Eu, particularmente, não me sentia contemplado com essa organização dos fatos. Saía, pensava eu, por não sentir pertinência em minha forma de trabalho: poderia me desdobrar para produzir práticas que refletissem minha crença e minha concepções profissionais, mas o faria contra o funcionamento tendencial do serviço e da forma como a assistência pública se acopla à demanda dos cidadãos no município. Nesse sentido bastante específico eu saía por não sentir pertinência.
Dividia-me, nesses períodos, entre a tarefa de trabalhar com devoção e coerência nos projetos em andamento e a tarefa prenunciada de escrever sobre as experiências vividas. Sentia que tinha esse débito com minha formação, minhas convicções, minha honra: se isso é a Reforma Psiquiátrica em ato, se essa é a realidade, pois bem, preciso expressar minhas preocupações e problematizações a respeito! Além disso, sentia-me traído pelo fato de, tendo estudado sobre saúde mental e saúde pública na graduação, tendo realizado aprimoramento na área, tendo participado de discussões, eventos, grupos de estudos, nunca tivesse sido confrontado com esse nível, essa conformação problemática. Isso, pensava eu, precisa ser pensado: essa efetivação específica de serviços, em que tanto mais do que a Reforma Psiquiátrica está em jogo.
Quando finalmente saí, o fiz – creio eu – com algum trabalho feito: estava relativamente satisfeito com o andamento de alguns casos, com algumas propostas terapêuticas e institucionais para as quais sinto que contribuí. De alguma maneira saí com a sensação de que deixei algo passível de um desdobramento potente (do meu ponto de vista); o que será desse legado não cabe a mim.
Trouxe comigo a outra ponta do legado – aquele que me ficou da experiência passada. Trouxe comigo, acima de tudo, uma sensação de dívida enorme: dívida com a população que foi, em inúmeros aspectos, mal atendida, dívida com os ideais que carrego comigo e que sinto que foram mal representados e pouco contemplados, dívida com a experiência que carregava e que precisaria converter em trabalho. Esse é o legado que trago, legado em nome do qual escrevo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS – UM CONVITE AO PENSAMENTO
Optei por ancorar esse relato unicamente em minha experiência – sem os recursos à literatura na área e sem a referência a textos que problematizem questões afins àquelas que trago à baila. Se o fiz, foi porque procurei, com isso, convidar ou favorecer ao leitor remeter-se, também ele, à própria experiência. Acredito que seja importante, no campo da saúde mental pública, que possamos articular os campos da práxis e do engajamento na condução cotidiana dos serviços, por um lado, e o campo da discussão teórica. Parece-me problemática a tendência em dissociar os campos da pesquisa universitária e da prática em serviço, particularmente em campos que dizem respeito tão intimamente à organização social e ao bem-estar da população.
De alguma maneira o trabalho, conforme este se efetiva na prática em serviços municipais de atenção à saúde, produz uma espécie de dissociação no trabalhador: lá onde ele age, ele não pode pensar; lá onde ele pensa, ele não pode agir. Exemplo contundente dessa tendência que aponto, estive amplamente envolvido com a escrita em teoria psicanalítica e literatura no tempo em que estive trabalhando no CAPS II, e estou me propondo a escrever esse relato de experiência somente agora, após ter saído do serviço .
Gostaria de propor aqui uma compreensão do problema que aponta para uma possível medida prática; não a considero conclusiva nem suficiente, mas me parece significativa.
Como comentei, percebi no tempo de prática em serviço que a disposição e interesse logo se converteram em indignação resignada e ressentimento. Pois bem, parece-me decisivo o papel do ressentimento na montagem do aparelho que acabou nos colocando como coniventes, passivos e apáticos nesse processo; por isso parece-me oportuno que os cursos de graduação nas áreas da saúde se aproximem mais, o máximo possível, da práxis cotidiana em serviços dessa ordem, em estágios curriculares. O que acredito que seria favorecido com isso seria um enriquecimento das aulas teóricas com conhecimento prático por parte dos alunos e dos professores, e a articulação das discussões curriculares e leituras com a tentativa de um entendimento da situação concreta, dos entraves e perspectivas em vista para o engajamento implicado e consciente dos futuros profissionais no serviço e no futuro do serviço.
É claro que essa medida, ou a adoção desse tipo de proposta curricular como tendência, não seria suficiente; há outros inúmeros problemas: a relação da centralização médica da prática em saúde com a organização de um sistema como o SUS, a valorização do sistema pelo poder público e compatível investimento, a implantação efetiva de aspectos da legislação reguladora do SUS que nunca chegaram a sair do papel, para ficar só nos aspectos mais dramáticos. Mais que isso, acho imprescindível que a expressão SUS e outros correlatos deixem de funcionar como palavras de ordem e incitadores ideológicos, e passem a operar como reguladores de uma práxis em ato, de um fato necessitando de cuidado e atenção.
Outro ponto digno de nota é o favorecimento da sensação de impotência e falta de recursos por parte do profissional engajado. A burocratização da administração, a imposição de observação a normas que pasteurizam o papel do profissional e de sua criatividade no serviço, a imposição de longas tramitações na discussão e implementação de inovações, o frequente “esquecimento” ou abandono de projetos em vias de implantação – essas muitas manifestações do poder da máquina administrativa sobre o profissional singular favorece a sensação de impotência e de resignação. Tenho notícia também de muitos espaços em que a cobrança de eficiência e produtividade impõe um ritmo de trabalho repetitivo que inibe o pensamento sobre a prática e favorece a prática repetiviva à la “Tempos Modernos” . Esse aspecto do trabalho em saúde pública repete em muito a dinâmica geral da alienação no trabalho conforme efetivada na modernidade. Exemplo extremo desse tipo de expediente e de suas consequências nefastas se encontra no trabalho burocrático dos milhares de alemães e judeus empregados na administração e operação da máquina nazista e de suas fábricas de extermínio; cada um trabalhava como podia, fazendo seu melhor para cumprir metas e prazos, construindo trens, fábricas ou “bairros planejados”, mantendo com o favorecimento da máquina uma bela ignorância frente à operação do mal sistemático.
Claro que algumas proporções devem ser guardadas; na medida do possível, no entanto, é importante que cada um de nós possa assumir plena responsabilidade diante de suas práticas, e posso dizer com tranquilidade que vi muita gente bem-intencionada e “de bom coração” trabalhando em um sistema administrativo que não produzia nada de respeitoso ou honrado. Se a máquina administrativa do município para que trabalhei não mata ativamente cidadãos, certamente contribui para que morram por uma omissão e má gestão de recursos calculada com fins perversos, e acho que esse é o ponto que toco com esse trabalho: é tempo de repensar a contratualidade e a gestão dos serviços de atenção e cuidado à população para favorecer a implicação pessoal e a responsabilização dos profissionais pelo que se passa, superando os entraves anônimos e frios da administração “da máquina”.
Cito como exemplo de omissão perversa o fato de uma região do município ter ficado sem nenhum controle ou cuidado para os cidadãos com diabetes e hipertensão por falta de médicos e equipamentos (por no mínimo dois meses, período em que trabalhei na UBS de referência – certamente mais tempo que isso). Tenho certeza que nessa população (de cerca de seis mil habitantes) alguém eventualmente teve uma intercorrência fatal em virtude, indiretamente, do descuido. Isso aconteceu, lembro, em uma cidade vizinha a São Paulo, maior cidade e centro financeiro do país.
Por dezoito meses trabalhei em condições absolutamente precárias; foi uma experiência única, profundamente perturbadora. Espero pelo dia em que isso não será mais uma realidade em nosso país, para ninguém; até lá, no entanto, não quero esquecer nem deixar esquecer: acho que é compromisso de todos atuando na área se engajar ativamente lá onde o trabalho é mais precário e desafiador – o envolvimento em trabalho público significa muito pouco em outros termos.
Antes de encerrar, gostaria de agradecer imensamente a todos os profissionais e usuários que conviveram comigo nesse período de trabalho no CAPS II mencionado; aprendi muito, vivi muito e criei bons vínculos nesse tempo.

 

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