A linha da vida em um rizoma habitual e imprevisível.

18 votos

Trabalhei muitos anos em uma UTI Neonatal. Era a maior da América Latina, talvez ainda seja. A vida pulsava nos mais inusitados sentidos naquelas salas cheias de equipamentos, monitores, respiradores e incubadoras. Eu era membro da equipe de enfermagem. Estávamos juntos com os residentes de pediatria, os pediatras plantonistas, preceptores, secretarias, nutricionistas, fisioterapeutas, técnicos em radiologia, equipe de higienização, manutenção e assistentes sociais. Uma grande equipe multidisciplinar.

Fazíamos um pouco de transdisciplinaridade informal e ainda tímida. Sem itinerar para dar conta das demandas complexas que ocorriam ao longo dos plantões que se sucediam 24 horas por dia, sete dias por semana, durante todos os anos, ficava ainda mais sofrido.

Paradoxalmente, o lugar pulsava de vida, desejos, frustrações, sonhos e paixões em meio aos óbitos intermitentes.  Nossos instintos humanos eram levados ao extremo. Muitas cenas me acompanham ao longo de todos os anos. Pensar sobre a instituições de cenas naquele cotidiano me ajuda a tecer uma narrativa de autoconhecimento e visão de mundo.

Muitos prematuros e recém nascidos com risco de morte podiam ser mantidos vivos enquanto se fortaleciam ou declinavam para o fim de uma curta existência. Algumas horas, semanas, meses ou muitos anos pela frente em uma vida que seguia, depois de ter chegado de forma turbulenta a este mundo.

O centro de tudo eram aqueles pequenos seres em torno dos quais todo o saber acadêmico e a experiência se articulavam para estender uma perspectiva mais longa a existência. Em certos momentos tínhamos que jogar a toalha. A sobrevida era apenas dor e a ética nos exigia uma retirada em favor de a vida seguir seu curso. Parecia o mais certo a fazer. Certas formas de existência parecem dolorosas demais para serem encorajadas.

Num desses casos em que esperávamos a morte tomar seu tributo, uma mãe que já vivia seu limite de fertilidade, se agarrava a sua cria prematura. A cada parada cardiorrespiratória ela postava-se do lado da porta e rezava pela vida de seu filho, enquanto lutávamos para mantê-lo vivo. Como ele sempre voltava depois de várias reanimações, já sabíamos que ele teria serias sequelas neurológicas se sobrevivesse. Queríamos permitir sua partida, sentíamos que era uma forma misericordiosa de aliviar a dor sem nome que um recém-nascido sente.

Mas a mãe rezava e o filho sobrevivia. Meses depois, ela finalmente levou seu filho para casa. Pensávamos saber o que o destino lhe reservava: Uma vida dedicada a cuidar de uma criança que teria muitas necessidades especiais. Um filho que lhe exigiria um grande esforço que ajudaria a consumir a energia que o tempo naturalmente também lhe tiraria.

Alguns anos depois encontrei-a num ônibus. Eu já não trabalhava mais na UTI Neonatal. Ela me reconheceu e me chamou. Sentei ao seu lado. Ela trazia no colo seu filho e o estava levando para um horário de tratamento com seu fisioterapeuta. De fato parecia ter bastante dificuldades. Ainda não caminhava e falava pouco. Mas fiquei feliz porque ele sorria e respondia aos meus gestos de afago. Nosso maior medo era entregar aos pais um filho que não pudesse dialogar e interagir com seu mundo.

Mas nesse momento a mãe parecia feliz, sorridente e eu pensei que afinal, suas preces tinham sido atendidas e nossos temores não haviam se confirmado. Era um mal menor que se constituirá em um bem imponderável e sem medida como qualquer outra relação de amor que os encontros da vida nos proporcionam.

Era isso. Mas também era bem mais. Ela me contou que um anos depois da alta de seu filho, ela engravidara de novo. Uma surpresa feliz que aninhava uma outra inusitada felicidade. Sua gestação era de gêmeos. Um menino e uma menina vieram para aumentar sua família. Certamente trouxeram tudo o que vem junto com uma gestação que sucede um parto prematuro. Muita ansiedade e medo. E depois de nascidos os gêmeos, foram muitos os labores. Mas a mãe sorria e me contava alegre as suas peripécias de mãe "temporã".

Sempre duvidei de nossos presságios. Sempre fui cauteloso com meus julgamentos a respeito do que se anuncia como sina e é apenas provável. Depois dessa curta conversa tornei-me mais cético ainda a respeito do que esperamos do futuro. Não sabemos o que pode resultar de nossos desesperados expedientes de lidar com o aqui e o agora.

Parece que o futuro que tento adivinhar é certamente a primeira opção que o destino ira descartar. E quando acertamos na forma, erramos no conteúdo e vice e versa.

Nos primeiros dias de trabalho na UTI Neonatal, um pai chegou ao lado da incubadora onde estava seu filhinho, ligado a todos os aparelhos, sem os quais não poderia estar vivo. Ele olhou tudo aquilo. Olhou seu pequeno filho e sentindo o que não consigo nem começar a imaginar, voltou-se para mim e perguntou:

– Ele tem alguma chance?

Disse-lhe que sim. Falei que o filho dele era a razão de ser de todo o trabalho no qual todos nós investíamos nossos dias no trabalho em saúde. E ele me respondeu:

– Então vou estourar os foguetes que comprei para anunciar aos vizinhos e amigos a chegada de meu filho.

Tínhamos a mesma idade, creio eu. Menos de 25 anos na época. Semanas depois ele e sua esposa levaram o pequeno para casa. O tempo passou.

Cinco anos depois, um rapaz me para na rua. Lembrava meu nome. Eu não lembrava o dele. Mas reconheci o menino sorridente que estava caminhando ao lado dele. Os foguetes anunciaram o devir esperado.