Homossexualidade: como curar o que não é doença? (Parte 1)

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Por Felipe Stephan Lisboa
Psicólogo, especialista em Ciências Humanas e Saúde pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e, atualmente, mestrando em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ, e responsável pelo blog Psicologia dos psicólogos.

Discussões sobre a possibilidade ou impossibilidade de se tratar e mesmo curar a homossexualidade frequentemente vêm à tona. Sei que a proposta que circula pelo Congresso Nacional  não é exatamente para “curar gays”, mas para permitir (ou deixar de proibir) que psicólogos tratem pessoas que desejam mudar sua orientação sexual. Para quem não está por dentro desta história, explico: o Projeto de Decreto Legislativo nº234/11 (que vem sendo chamado de Projeto de Cura Gay) de autoria do deputado evangélico João Campos (PSDB-GO), visa a revogação de dois dispositivos da Resolução 01/1999 do Conselho Federal de Psicologia (CFP). Esta resolução proíbe o envolvimento do psicólogo com qualquer atividade que favoreça a patologização da homossexualidade – o que inclui tanto pronunciamentos públicos quanto propostas de tratamento. O CFP, obviamente, se manifestou contra tal projeto. No presente artigo gostaria de tecer algumas considerações sobre toda esta celeuma em torno da tal “cura gay”.

Uma primeira questão é se é possível falar em cura. Na área da saúde existem tratamentos para muitas doenças, mas a cura (ou seja, a remissão completa e permanente dos sintomas) é possível somente em poucos casos. Na saúde mental, então, é praticamente impossível falar em cura. Pelo menos no sentido tradicional de retorno ao que era antes. Para o filósofo (e médico) Georges Canguilhem, em seu estudo clássico O normal e o patológico, um fato biológico fundamental é que a vida não conhece reversibilidade. Desta forma, não é possível falar em cura como um retorno à “inocência orgânica”, mas como um rearranjo, uma nova forma de vida. Curar, para Canguilhem, é criar para si novas normas de vida, às vezes superiores às antigas. Neste sentido, poderíamos até falar em cura na saúde mental, mas a palavra mais apropriada seria transformação. Psicólogos e psiquiatras não curam, mas auxiliam as pessoas a se transformarem, a construírem novas possibilidades de ser e estar no mundo.

Uma segunda questão é se ser gay é ou não uma doença. Afinal, quer se deseje a cura ou um tratamento para homossexualidade, a ideia implícita a este desejo é que ser gay é algo doentio, algo que não deveria ser. Na verdade, a perspectiva, declarada ou não, dos partidários da chamada “cura gay” é que ser gay é um pecado porque a bíblia assim o diz. Sobre esse argumento não tenho nada a dizer. É um argumento de fé: “a Bíblia disse, então é verdade”. Na verdade este nem é propriamente um argumento. É uma crença. A única coisa que poderia questionar é que a Bíblia também diz inúmeras outras coisas que se aplicavam à época em que foi escrita, mas não à atualidade. Exemplos de recomendações bíblicas absolutamente anacrônicas existem às dezenas, quiça às centenas. Não vou me deter nisso. Se você considera a Bíblia a fonte absoluta da verdade, do bom e do certo, não sou eu que vou lhe convencer do contrário.

Mas voltando à questão de se a homossexualidade é ou não uma doença, precisamos refletir sobre o que, afinal de contas, é uma doença. Não paramos para pensar nisso normalmente, embora seja uma questão fundamental. Uma resposta possível é: doença é ausência de saúde. Só que esta resposta não resolve o problema, pois se doença é ausência de saúde, saúde é ausência de doença. Trata-se de um argumento circular que não responde a pergunta. A definição de saúde da Organização Mundial de Saúde (OMS) diz que saúde não é somente a ausência de doença, mas o “completo bem estar físico, psíquico e social”. Pegando esta definição e invertendo-a, poderíamos dizer que doença é o “completo mal estar físico, psiquico e social” ou então o “incompleto bem estar físico, psíquico e social”. A primeira anti-definição, o "completo mal estar", é muito extrema, deixando de fora grande parte do que compreendemos vulgarmente como doença. Já a segunda, o "incompleto bem estar" aponta para a possibilidade de todos sermos, em alguma medida, doentes, afinal, quem pode dizer que possui um completo bem estar biológico, psíquico e social? De qualquer forma, o que é doença ainda não está claro.

Uma definição clássica diz que saúde é o silêncio dos órgãos. Se não sentimos nosso corpo isto significa que estamos bem. Quando algum órgão, por outro lado, faz “barulho”, incomoda, dói, aí teríamos uma doença. Esta definição talvez valha para muitas situações da vida cotidiana: se sentimos uma dor de dente, procuramos um dentista; se a dor é no coração um cardiologista; se a dor é de coluna, um ortopedista ou um fisioterapeuta, ou seja, somente quando algo incomoda é que costumamos procurar ajuda – daí talvez a dificuldade de pensarmos preventivamente. Muito embora nem tudo que cause dor seja de fato uma doença (por exemplo, o parto ou uma dor decorrente de um tombo), muitas doenças causam dor. Mas e aquelas doenças silenciosas, como alguns tipos de câncer, que vão corroendo por dentro sem gerar, pelo menos nos momentos iniciais, nenhum sofrimento? O problema de definir doença em função do sofrimento é que nem toda doença gera sofrimento – ou pelo menos não todo o tempo – e nem todo sofrimento é patológico. Mas a relação doença-sofrimento ainda vale para a maioria dos casos – e também porque em algum momento o sofrimento costuma aparecer, mesmo nas doenças silenciosas – o que levou Canguilhem a dizer que “patológico implica pathos, sentimento direto e concreto de sofrimento e de impotência, sentimento de vida contrariada”. Mas será que isto vale tanto para as doenças físicas quanto para as chamadas doenças mentais? Podemos dizer que todo doente mental sofre? Um depressivo claramente sofre, mas o mesmo não pode ser dito de um sujeito na fase maníaca do transtorno bipolar. O problema deste sujeito é, de certa forma, justamente a falta de sofrimento. Como podemos então dizer que ele está doente?

Pra finalizar esta discussão sobre o que é doença, sem pretender concluí-la, obviamente, não poderia deixar de mencionar uma concepção de doença que a identifica com a anormalidade e, o contrario, a saúde com a normalidade. Dizer o que é normal ou anormal é ainda mais complexo do que o que é saúde e doença, mas tradicionalmente normal esteve associado à média estatística: o que se aproxima da média é normal e o que se distancia é anormal. O problema é que é impossível definir o ponto exato onde termina a normalidade e começa anormalidade e vice-versa. Neste sentido, afirma Canguilhem, a estatística não fornece nenhum meio para decidir se o desvio é normal ou anormal, muito menos se determinado traço humano é normal ou patológico. Toda decisão é arbitrária. E, portanto, argumenta Canguilhem, social. Para este autor não existem fatos que sejam patológicos ou normais em si. O que é normal em uma situação pode ser patológico em outra. Para ele, é o próprio sujeito que define o que é ou não doença e se está ou não doente. A norma, para Canguilhem, é sempre individual. A doença não pode, portanto, ser definida por uma média estatística ou um por julgamento social, mas por um julgamento de valor realizado pelo próprio sujeito diante da polaridade dinâmica da vida. Para diferenciar saúde e doença, normalidade e patologia, Canguilhem propõe o conceito de normatividade vital, que é a capacidade do organismo de não somente responder aos desafios de seu meio, mas de criar novas normas ou possibilidades de vida. Tanto a saúde como a doença, para ele, são formas de se lidar com a instabilidade e imprevisibilidade da vida. No entanto, a doença, por limitar o organismo, é considerada uma forma negativa. Já a saúde é potência normativa e implica na capacidade de superar crises e instaurar novas normas e valores.

Tendo tudo isso em vista e voltando à nossa questão central, poderíamos dizer que a homossexualidade é uma doença? Absolutamente não. Afinal, ser gay não gera em si qualquer sofrimento ou mal estar – além, obviamente, daqueles advindos de vivermos numa sociedade que valoriza a heterossexualidade e desvaloriza outras formas de vivenciar o sexo e a afetividade. Além disso, ser gay não implica em qualquer perda de potência normativa, ou seja, da capacidade de lidar com os desafios do mundo e transformá-lo. No entanto, os partidários da “cura gay” podem argumentar: “mas e os estudos que apontam que somente 10% das pessoas são gays? O normal é ser hétero!”. Então, recorrendo novamente à Canguilhem, poderíamos quebrar tal argumento pensando que nem tudo o que é “anormal” estatisticamente é patológico. Um exemplo disto são as anomalias, que representam tanto algo insólito, inabitual, quanto algo anormal ou estatisticamente desviante. Para o filósofo, as anomalias são conseqüência da variabilidade biológica individual e não são necessariamente patológicas. O que faz de uma anomalia algo normal ou patológico é o favorecimento ou prejuízo da vida. Se favorece ou, pelo menos, não atrapalha, é saudável; se prejudica é patológica. Certas anomalias podem, apesar de estranhas ou monstruosas, não causar nenhum mal ou sofrimento significativo a seu portador, enquanto outras, aparentemente insignificantes, podem trazer grandes prejuízos por atingirem importantes órgãos ou funções anátomo-fisiológicas. O que importa, no final das contas, é a normatividade vital, ou seja, a capacidade de instituir normas de vida. Uma anomalia é saudável se não for incompatível com a vida. É patológica, por outro lado, se o for. Para Canguilhem a questão da anomalia demonstra que diversidade não é doença e que o anormal não é necessariamente patológico. Ao contrário, problemas que afetam grande parte das pessoas (como a cárie e a tristeza) podem não ser doenças. Enfim, nem tudo que é minoritário é patológico e nem tudo que é majoritário é saudável.

Além do mais, como também aponta Canguilhem, a palavra normal tem dois sentidos: aquilo que é comum e aquilo que é ideal, ou seja, aquilo que “é” e aquilo que “deveria ser”. Quando perguntamos, portanto, se a homossexualidade é normal, precisamos responder à outras duas perguntas: a homossexualidade é comum? A homossexualidade é ideal? A primeira pergunta leva ainda à outra: o que é comum? Algumas pesquisas realmente apontam que cerca de 10% das pessoas são homossexuais. Aparte o fato destas estatísticas desconsiderarem aqueles que estão “dentro do armário”, será 10% um número significativo ou não? Difícil dizer, afinal, para certas questões 10% pode ser muito (por exemplo, 10% dos homens tem câncer de próstata) enquanto que para outras questões pode ser pouco (por exemplo, 10% dos brasileiros usam smartphones). Tudo depende do contexto. Para aqueles que consideram a homossexualidade um pecado, uma abominação, 10% de gays é muito. Para o movimento gay, talvez seja pouco diante do número significativo de gays "dentro do armário". Com relação à segunda questão (a homossexualidade é ideal?), talvez a pergunta correta seja: a homossexualidade é natural? “De forma alguma”, dizem os partidários da “cura gay”: “o natural é o relacionamento homem-mulher. Qualquer outra forma de relação é uma abominação”. Por que, questiono? “Porque a Bíblia disse!”. Outro argumento, por favor… “Ok, porque na natureza o normal é a heterossexualidade”. Argumento falso: existem inúmeros exemplos de relações “homossexuais” na natureza. Outro argumento: “O fim de toda relação sexual deve ser a reprodução. Se não há reprodução, é antinatural”. Ah, então quer dizer que casais heterossexuais que não podem ou não querem ter filhos são abominações também?

Finalmente, os partidários da “cura gay” podem argumentar: “Ok, você pode até ter razão quanto à tudo isto, mas por que então a Organização Mundial de Saúde, na sua Classificação Internacional de Doenças (CID-10) e a Associação Psiquiátrica Americana no seu Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM) já incluíram a homossexualidade dentre as doenças mentais? E mais, no caso do DSM a homossexualidade só foi eliminada, em 1980, em função de uma intensa pressão do movimento gay – o mesmo ocorrendo em 1990 com o CID. Isto prova que a decisão de retirar a homossexualidade do DSM foi política, não científica. Desta forma, como a ciência ainda não conseguiu mostrar de forma conclusiva que a homossexualidade é ou não uma doença, ela de fato pode ser”. Belo argumento, pena que seja falso. Em primeiro lugar, como já disse anteriormente neste blog, a ciência não tem como provar que a homossexualidade é ou não uma doença ou transtorno mental. Definições como esta são sempre o resultado de acordos coletivos, atravessados por múltiplos interesses e perspectivas e, portanto, dificilmente consensuais. O que os partidários da "cura gay" não percebem, ou não querem perceber, é que é desta forma que TODOS os diagnósticos, especialmente no campo da psiquiatria, são concebidos. Há muito mais política do que ciência neste processo. E mais: ciência e política andam juntas, são inseparáveis. Portanto, o que quer que esteja inserido em qualquer manual de doenças não representa a verdade suprema sobre o que é normal e o que é patológico. A homossexualidade pode até ter sido incluída no CID e no DSM, mas isto não significa que ela é, de fato, uma doença. Significa apenas que certos grupos de "especialistas", imbuídos do espírito de sua época, decidiram, por votação, que a heterossexualidade era a norma.

OBS: Na segunda e última parte deste texto discutirei se (e de que forma), mesmo não sendo a homossexualidade uma doença, é possível auxiliar uma pessoa que deseja deixar de ser gay a converter-se à heterossexualidade – e vice-versa. 

                       

Texto originalmente publicado no blog Psicologia dos Psicólogos: https://psicologiadospsicologos.blogspot.com.br/2013/01/homossexualidade-como-curar-o-que-nao-e.html