Humanização e Grupos de Acolhimento

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A Política Nacional de Humanização – PNH , preconizada  pelo Ministério da Saúde tem como objetivo promover mudanças fundamentais na forma de se organizar e prestar serviços de saúde hospitalar no Brasil, propondo: “Valorizar a dimensão humana e subjetiva, presente em todo ato de assistência à saúde…”.

Verifica-se aqui uma mudança no eixo daquilo que em geral é o centro de gravidade de qualquer centro hospitalar: a técnica e sua eficácia.

Não se trata de abandonar o rigor técnico das atuações ou de desprezar equipamentos sofisticados, mas sim de, a meu ver, resgatar a dimensão subjetiva e ontológica do cuidado, o que só acontece no encontro com outro ser humano.

O filósofo Leonardo Boff (2005) nos lembra que em sua origem latina a palavra cuidado significa cura, que por sua vez também significa preocupação, solicitude (Rocha, 2010) e para Martin Heidegger (2006) “em sua essência, o ser-no-mundo é cura” de modo que a própria condição existencial humana se assenta no cuidado.

Sendo assim também podemos compreender mais profundamente a expressão tratamento como gesto de cuidar, que para além de uma mera ocupação técnica objetificante, refere-se à própria maneira como “nos tratamos”, ou seja, o encontro solícito em que comparece o desvelo e a preocupação com o outro como parte indissociável do processo de cura e da organização de um novo ethos.

Especialmente no âmbito dos serviços públicos de saúde, muitas vezes tomados como paradigma do mau trato, portanto lugar inóspito à condição e dignidade humana, oferecer uma assistência de qualidade vai além de buscar a precisão dos exames e diagnósticos. A questão é se temos a capacidade de oferecer também um rosto vivo capaz de espelhar a singularidade e reconhecer a precariedade (humana) com que cada paciente se apresenta, responsabilizando-nos por ele.

Disto nasce o acolhimento e formação de vínculos que se estendem à facilitação de acesso aos serviços necessários, instalações adequadas e fluxo burocrático administrativo ágil que não se sobreponha ao sofrimento humano.

O acolhimento depende da disponibilidade pessoal daquele que se apresenta para tal e isso se revela em sua própria expressão física. De modo complementar, a existência de espaços físicos adequados e limpos ajudam a indicar o valor que o outro tem para aquele que o recebe e que cuidado pretende oferecer.

Tudo isso não é menos válido para o próprio funcionário, uma vez que compartilham do mesmo espaço, estrutura e destino humano. Este só terá para oferecer aquilo que nele mesmo foi despertado.

 

Grupo Acolhida do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo

Implantado no ICESP desde o primeiro dia de sua inauguração, em maio de 2008, e coordenado pelo serviço de psicologia, o Grupo Acolhida foi concebido como um grupo de recepção e acolhimento aos novos pacientes e seus acompanhantes que diariamente ingressam no hospital para iniciar seu tratamento oncológico.

Composto por participantes da equipe multiprofissional, os grupos são realizados de 2ª a 6ª feira, das 8h às 8:50h e das 13h às 13:50h em nível ambulatorial, com apoio da Diretoria Geral de Assistência (DGA) do ICESP, e suporte do CIH – Centro Integrado de Humanização do ICESP.

Olhares perdidos, expressões de estranhamento e um estampado ponto de interrogação marcam normalmente a chegada dos pacientes em sua primeira vinda ao ICESP. É o encontro com o medo do desconhecido, da doença, do hospital e do tratamento. É exatamente nesse momento que o Grupo Acolhida se apresenta como oferta de hospitalidade, acolhimento, orientação e tratamento humano.

Todos são dirigidos a uma sala onde encontram um profissional da assistência que se apresenta e estende esse convite à todos os presentes, incluindo os acompanhantes.

Os objetivos do encontro: Que todos possam conhecer o ICESP e as pessoas que deles irão cuidar, assim como podem tirar suas dúvidas sobre as principais modalidades terapêuticas e recursos diagnósticos disponíveis na instituição, seus direitos e orientações sobre como acessá-los. A conversa segue tendo como roteiro um conjunto de slides especialmente preparados para esse fim.

Particularmente importante é o slide referente aos principais tipos de tratamento oncológico: quimioterapia, radioterapia e cirurgia. Os pacientes são chamados a falarem sobre o que imaginam ou o que já ouviram dizer sobre cada um deles.

É assim, num clima amistoso, onde se pode falar abertamente e com respaldo de profissionais sobre aquilo que geralmente causa mais ansiedade e medo, que desejamos criar segurança e confiabilidade nas relações.

Ao final é entregue uma pasta contendo um folheto com mais algumas informações e telefones úteis aos pacientes, um presente simbólico, para que possam guardar todos os papeis de agendamentos de exames e consultas que farão dali em diante. Na seqüência todos são direcionados aos consultórios médicos, já mais orientados e menos angustiados, com a escuta mais disponível, tendo dissipado alguns medos: Em vez da “queda no abismo”, encontraram um rosto humano e vivo – holding (“sustentação” conforme empregado pelo psicanalista D.W. Winnicott).

Desde o inicio em 2008, já foram recebidos pelo Grupo Acolhida aproximadamente 20.000 pessoas, entre pacientes e acompanhantes. Porém, nada disso seria possível sem um correto esclarecimento sobre como deve ser a atuação da pessoa do profissional para essa atividade.

“O acolhimento não é um espaço ou um local, mas uma postura ética…” (Min. Saúde, 2004). É justamente isso o que desejamos favorecer e despertar em todos aqueles que se dispõem a integrar o Grupo Acolhida.

Somente após essa preparação o colaborador participa de, no mínimo, três apresentações do Grupo Acolhida até sentir-se à vontade para poder conduzi-lo adequadamente e fazer de cada encontro, um encontro acolhedor.

Embora sejam transmitidas algumas orientações aos pacientes, não somos um grupo de informação, pois para isso bastaria um folheto.

Costumo dizer durante o Grupo Acolhida que há uma parte do nosso ser que não pode ser encontrada num exame de sangue, nem numa tomografia ou eletroencefalograma. Há uma região do nosso ser que só pode ser encontrada quando há alguém que nos olha e ouve, reconhece e dá sentido ao que vivemos. Ai acontece o encontro. Nisso o paciente reconhece ser acolhido e bem tratado.

Por: Paulo Antonio da Silva Andrade
Psicólogo hospitalar do ICESP e coordenador do Grupo Acolhida

Rede Humaniza FMUSP-HC
https://www.hcnet.usp.br/humaniza/index.html
https://www.facebook.com/RedeHumanizaFMUSPHC

 

Bibliografia

Boff, L. O cuidado essencial: Princípio de um novo ethos. Inclusão Social, Vol. 1, No 1 (2005). Disponível em: https://revista.ibict.br/inclusao/index.php/inclusao/article/view/6/11 Acessado em: 28/01/2013.
Heidegger, M. Ser e tempo. Petrópolis: Editora Vozes, 2006, p 260.
Pessini L & Bertachini L (orgs.). Humanização e cuidados paliativos. EDUNISC-Edições Loyola, São Paulo, 2004, p 319.

Rocha, Z. A ontologia Heideggeriana do cuidado e suas ressonâncias clínicas.
SÍNTESE Revista de Filosofia. Belho Horizonte. Vol. 38, Nº 120, Janeiro-Abril 2011, pp. 71 – 90. 2010. Recife. Disponível em: https://circulopsicanaliticope.com.br/site/wp-content/uploads/2011/07/CONFERNCIA-NO-CPP.pdf Acessado em: 28/01/2013

Saúde, M. Acolhimento com avaliação e classificação de risco. 2004. Brasilia – DF. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/acolhimento.pdf Acessado em 28/01/2013
Saúde, M. Acolhimento nas práticas de produção de saúde. Serie B. textos básicos de saúde. 2006. Brasilia – DF
Saúde, M, Secretaria de Assistência à Saúde: Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar. Serie C. Projetos, programas e relatórios, n. 20. 2001. Brasilia – DF.