O Palhaço e a Humanização

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E quem não se lembra da infância? Trago uma bela recordação da primeira vez que fui a um circo: as luzes, o trapézio, os animais ferozes, os domadores. Mas uma imagem em particular sempre permanece fixada. O sorriso do palhaço, seu rosto desenhado em cores fortes e aquela cartola com um enorme girassol. Tantos anos depois ainda conseguem arrancar um sorriso.

O palhaço sempre despertou encantamento. Sua origem se perde na aurora dos tempos. Destacou-se como uma figura religiosa dos festivais orgiásticos na antiga Roma, virou bobo da corte na idade média,  até chegar ao teatro e ao circo. Ganhou sofisticação nas chamadas óperas bufas e hoje disfarça-se de acrobata em apresentações maravilhosas do Circo de Soleil. Enfim, são inúmeras as ramificações do palhaço. Mas entre todas elas parece existir pelo menos duas cosias em comum.

A primeira delas é que o palhaço parece ser necessário num mundo onde temos tanta dor e sofrimento. Funciona como uma espécie de contraponto da dor e da tristeza. A segunda, diz respeito a um certo caráter anarquista do palhaço, sua capacidade de ser e fazer coisas que num contexto rotulado de normalidade não poderia ser feito. Ele pode falar da feiúra do nariz do rei ou das amantes do cardeal e ter um risco mínimo de ser punido por isso. Neste sentido, o palhaço pode ser o porta-voz de toda uma sociedade e instrumento dos dominados para construção individualizada da crítica social.

Assim, não causa espanto que os palhaços estejam gradualmente invadindo os hospitais. Parecem cumprir uma função muito importante: trazer sorriso e alegria em situações costumeiramente caracterizadas por dor, tristeza e isolamento. Quem já viu um bom grupo de palhaços nos hospitais tende a vê-los com muita simpatia, afinal, podem arrancar um sorriso daquele menino que não diz uma palavra ha dias.

Mas talvez os sorrisos escondam outras coisas, podem funcionar como capas do sofrimento e, numa certa medida, podem até intensificá-lo. Antes que alguém me chame de “inimigo dos Doutores da Alegria”, gostaria de contextualizar meu argumento.

Um dia um “terapeuta do riso” entrou no quarto de uma adolescente e começou a brincar com ela. Parecia ser um artista esmerado em sua arte. Mas não estava conseguindo  se comunicar com a paciente. O grande problema da comédia é quando ela não arranca  o sorriso. Mas nosso “terapeuta” era insistente, continuou fazendo sua graça. A paciente olha para ele e diz:

-Não consigo rir, desculpa. Estou sentindo dor e o médico não vem me ver há dois dias!

Nosso terapeuta não perdeu o ritmo da alegria. Pegou seu martelinho de carnaval, bateu na cabeça da jovem e disse:

– Ah, esses doutores são sempre muito ocupados, não é? Mas não se preocupe, eu estou aqui!!

Óbvio dizer que a situação era por demais constrangedora. O fato é que nosso amado palhaço não tinha como dar resposta alguma frente ao que acontecia.  A forma como se estruturava os processos de trabalho naquele hospital criava situações que ao invés de produzir saúde e defender a vida, acabavam por produzir dor, sofrimento e muitas vezes morte. E quando o palhaço saia do quarto, divisava corredores superlotados, trabalhadores assoberbados,  falta de material hospitalar, filas de pacientes esperando pelo atendimento sob o sol do meio dia.

Do meu ponto de vista existem situações que não podem ser superadas pelo exercício da sátira. Diante delas, temos que mostrar indignação e nos mobilizarmos politicamente para produzir as transformações necessárias.

Existem muitos grupos que fazem um importante trabalho. Querem minimizar o sofrimento. O problema é que, muitas vezes sem ter clareza disso, estes projetos e ações acabam sendo conseqüência direta daquilo que querem atuar. São expressões da dor e do sofrimento atuadas de forma equivocada. Já ouvi queixas de pacientes em enfermarias pediátricas que gostariam que os palhaços sempre estivessem ali. Mas eles vão embora e demoram a voltar, isso quando voltam.

A solução, evidentemente, não passa pela retirada pura e simples desses projetos. Mas, quem sabe, incluí-los num projeto maior, como expressões de uma clínica que se expande, de uma ambiência mais receptiva às necessidades humanas, expressões de projetos terapêuticos singulares, de pactuações de co-gestão  entre os trabalhadores que incluam os “terapeutas do riso”, “os doutores da alegria” ou qualquer outro grupo como expressões diretas de processos de humanização coletivamente construídos e não como ações isoladas de um GTH que se transformou em extensão do setor de recursos humanos. Proponho assim a figura do “Palhaço Engajado”, alguém que atua organicamente inserido no projeto terapêutico e não um voluntário que irá embora deixando o sorriso e a alegria órfã.

Descolados de uma construção coletiva, essas formas de atuar, mesmo que aparentemente meritórias e humanizantes, acabam sendo na verdade ecos da dor e da vulnerabilidade. Com o tempo, teremos “palhaços” que estarão rindo para não chorar e usuários se perguntando sobre onde foram os “palhaços” ou o que fazemos com a falta de remédio e médico enquanto esse ser estranho tenta me arrancar um sorriso.

Humanização é coletivamente construir a produção da vida. Nessa construção coletiva, com certeza, o palhaço  pode ter um papel muito mais importante, que está muito além do que só fazer palhaçada!