A Tenda do Conto no Curso de Educação Popular em Saúde – Manaus

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Aconteceu de 14 a 17 de agosto o Curso de Qualificação em Educação Popular em Saúde, uma iniciativa da Secretaria Municipal de Saúde em parceria com a Fiocruz.

Estiveram presentes como facilitadores Jacqueline Abrantes com a Tenda do Conto, Ray Lima, Simone Leite, Vera Dantas, Maria Rocineide Silva, Antônio Edvan Florêncio, Reginaldo Chagas e José Ivo.

 Os métodos e estratégias de intervenção a partir da EPS foram trabalhados em 4 grupos, sendo um deles a Tenda do Conto, do qual participei. O texto abaixo relata toda a emoção sentida pelas pessoas que contaram suas histórias e mais ainda pelas pessoas que ouviram essas histórias. 

No último dia do Curso, essa e outras estratégias de intervenção transformaram-se em projetos que serão desenvolvidos nos mais diversos serviços de saúde existentes no município de Manaus. Há muito o que fazer e disposição é o que não nos falta.

A seguir, o texto apresentado pelo grupo da Tenda do Conto.

 

A TENDA DO CONTO
Quando Jacqueline Abrantes disse para trazermos um objeto que representasse algum fato ou história vivida, experiências passadas ou não compartilhadas, logo começaram os cochichos sobre o que poderia ser.
Alguém disse: vou trazer uma foto de casamento, eu vou trazer uma poesia, eu vou trazer uma aliança, eu uma música, teve até alguém que disse que traria uma bicicleta, mas a verdade é que ninguém sabia exatamente o que nos esperava. Ninguém imaginava quantas emoções uma cadeira de balanço e alguns objetos, que poderiam estar até guardados ou esquecidos, trariam para nós.
Viemos preparados, ou não (como diz Caetano). Na verdade ninguém está preparado para expor sua vida, sua história, sua intimidade, suas emoções, mas por algum motivo, abrimos o nosso coração e passamos por uma experiência libertadora que nos leva a pensar em novas metodologias de inclusão para serem trabalhadas nos serviços de saúde estimulando a autonomia e o protagonismo dos sujeitos, sujeitos de sua própria história.
Ana Lúcia nos conta que escreve poesias, mas somente quando está sofrendo, e na maioria das vezes, sofrendo com a dor do amor (ainda bem que tem 2 anos que ela não escreve nada).
Teve a história do nome da Rita, que foi dado em homenagem a Santa Rita de Cássia por ter dado tudo certo no parto de sua mãe que tinha levado uma queda.
Alcilene contou a história do seu amor de tantos anos pelo seu José e de quando ela pediu a Deus que o protegesse e o guardasse sempre ao lado dela por que não poderia viver sem ele;
A Lucimeyre pediu a Jesus que lhe desse um sinal, por que seu marido estava sendo transferido para outra cidade e isso lhe causava um medo muito grande. Ao ir a uma missa, rogando a Deus um sinal, ouve a música “Por que ele vive” que no refrão fala assim: “por que ele vive, eu posso crer no amanhã, por que ele vive, temor não há, mas eu bem sei que meu futuro está nas mãos do meu Jesus que vivo está…”. Depois de ouvir essa música ela soube que não deveria mais ter medo de nada. Preparou as malas e foi.
A Denise contou a história do seu amigo Nelson e de como ele a ajudou a superar a dor de um amor perdido. Cobrindo uma matéria jornalística na linha vermelha no Rio de Janeiro, Nelson vira pra ela e diz: “menina, você tem o sorriso mais bonito desse viaduto”. Esse sorriso virou um quadro com uma linda foto, que ela compartilha hoje conosco;
Miracy que tem 3 filhos, conheceu o atual marido que já tinha 2 filhos. Então tinha os meus, os seus, mas não dava pra ter os nossos, pois ela já tinha feito laqueadura. Então, o marido apaixonado lhe presenteou com um boneco que ela guarda até hoje. E ainda tem até hoje o telegrama do genro avisando do nascimento da neta.
A Paula nos trouxe a emoção ao falar do filho autista. A dor dela não é pelo autismo, mas pelo preconceito que enfrenta. Nos coloca para pensar sobre o discurso de inclusão social, mas que nem sempre é a nossa prática. Teve portas de várias escolas fechadas na sua cara, mas conseguiu, com muita luta, inseri-lo na educação formal;
A vó da Francinete foi lembrada também. O banho de cacimba, o cachimbo que ela fumava, o tabaco que ela mastigava e escondia de todos os netos;
Paraibana, Jacqueline não escolheu trabalhar com a Tenda do Conto, foi a Tenda do Conto que escolheu a Jacqueline. A mãe muito pobre aprendeu a ler pelo projeto Minerva, lembram disso? Ao nascer, foi cuidada pela vó que via nela uma força muito grande. Sempre pedia que Jaqueline cantasse uma música de Chico César que chama “Beradeiro“. Canta pra gente Jacque? Imaginem uma cigana lendo a mão de Paulo Freire;
A Beth Bezerra órfã de mãe aos 3 anos, família do seringal, vieram para Manaus e ela acabou sendo adotada pela D. Maria José. Mãe zelosa, batalhadora, carinhosa, atenciosa, não deixava a Beth brincar na rua. Colocava um banquinho para que a Beth pudesse olhar a rua e as árvores cheias de passarinhos que adorava. Beth chamava os passarinhos porque queria muito ter um. Beth, como é que a sua mãe                           cantava mesmo? “Sabiá lá na gaiola fez um buraquinho, voou, voou, voou… e a menina que gostava tanto do bichinho, chorou, chorou, chorou…”
A história da feliz infância da Rita Barroso quase não é contada, pois ela não estava pensando em falar, mas quando abriram a mala da Tenda do Conto, ela se deparou com um monte de objetos que fazem parte da sua história. O candeeiro que servia para iluminar as noites depois das 10 horas quando tudo ficava escuro, o cântaro cheio de água (não podia esquecer o guardanapo em cima), o rádio e as músicas de Nelson Gonçalves, o monóculo, as bonecas de pano, o terço e a bucha para limpar o pé antes de deitar. E a Rita foi criada assim, com muito amor, aconchego, almoço em família;
A Vânia ia trazer uma carta pra nós, mas não achou. Então ao comprar o jornal lembrou-se de uma história. Casou com o homem que amava, mas certo tempo depois teve que perguntar a si mesma: com quem me casei? Ele se transformou e isso a incomodou muito. Submissa, com 13 anos de casada uma amiga a aconselhou a procurar um emprego e acabou fazendo um curso de técnica de enfermagem e isso transformou a sua vida com o apoio da amiga e da mãe. Os sentimentos contra das pessoas que diziam que ela não ia conseguir é que aumentavam a sua fé e a certeza de que era capaz, e conseguiu! Divorciou-se e deixa pra nós a seguinte mensagem: “você precisa se respeitar, você precisa se amar.”
A história da D. Raimunda foi contada pela sua filha Tereza (aguenta coração né Tereza?). A única herança que sua mãe poderia lhe deixar era a experiência e a educação. Com 11 filhos, vinda de Sobral, tinha uma cultura muito extensa apesar de nunca ter terminado o 2.º grau. Os bons momentos passavam sempre juntas, com exceção da formatura da Tereza. Mais tarde, Tereza saiu de casa sem antes casar e isso não foi muito bem aceito não. Foi bater lá na Inglaterra e lá se casou. Entre altos e baixos, tem um filho de 19 anos. Ah! E também tem uma foto toda picotada do marido que depois de se arrepender, ela colou todos os pedaços. Perdeu sua mãe sem esperar, como que num segundo, e até hoje não superou. Queria a mãe por mais tempo aqui, né Tereza?
A Beth Modenel trouxe para nós uma foto tirada logo depois do seu parto onde nasceu a Beatriz. Demorou pra sentir que seria a hora de engravidar, o que aconteceu em 2006, mas não deu certo, foi uma dor muito grande e, a partir daí quis muito ser mãe. Desejava, pedia a Deus e de tanto querer, um belo dia na Bahia, ao comer uma muqueca, passou mal. Chegando a Manaus fez alguns exames e adivinhem? Estava grávida. Quando o lindinho (lindinho é o marido dela viu gente!), quando o lindinho soube chorou de emoção, são almas gêmeas. Só sentiu felicidade durante a gestação. No dia do parto, a Tereza foi barrada como acompanhante… é, a Tereza filha da D. Raimunda, e quem acabou tirando a foto foi o auxiliar do médico. Dessa foto nasceu uma canção para a Beatriz. Beth canta pra gente vai…
A Clara contou que estava de bobeira em casa quando um amigo a chamou para trabalhar na FVS – trabalho com a Dengue. Xiii, o marido não queria então ela fez tudo escondido. Ganhou uma linda bolsa para levar nas suas visitas, fez um curso e foi a campo visitar as famílias e inspecionar as áreas. Já era, na época, defensora dos animais. Ao entrar numa casa ouviu uma criança chorando, pois queriam matar o seu bichinho de estimação…, um jabuti. E a menina queria que a Clara guardasse o jabuti. Adivinhem onde ela guardou? Na bolsa de trabalho. Ela contou pra equipe, mas ninguém queria ajudar porque o bicho era muito pesado, mas acabaram se revezando em carregar o animal, com segundas intenções, é claro Clara: comer aquele bichinho. E foi o que fizeram. Quando Clara chegou à casa de uma amiga onde a equipe estava perguntou: Cadê o jabuti? Quando viu, o coitado já estava na panela. Ah gente, a Clara não comeu não viu.
A Simone nasceu em casa com a ajuda de uma parteira e essa raiz com o interior permeia sua vida até hoje. O marido gosta de praia e ela gosta de mato, difícil né! Foi convidada para ir para a Universidade trabalhar com plantas medicinais e foi, levada pela vontade de mostrar seus conhecimentos para outras pessoas. Surge o Movimento Popular de Saúde em 86. Quanto aprendizado o MOPS trouxe pra você Simone!
A história do Gabriel trazida pela Valdelane emociona como a história de todos os filhos. A fé e a oração de uma senhora benzendo, com as flores murchando em suas mãos, o filho todo roxo nos braços dela, o Espírito Santo chegou, colocou o Gabriel no colo e ele voltou a si. Gabriel é meigo, amoroso e a Valdelane só agradece a todas aquelas pessoas que ajudaram a trazer, pela fé, o Gabriel de volta;
A Kátia Patrícia nos mostrou um cartão dado a ela pelo esposo. Filha de pais separados teve que assumir a casa. Tem uma mãe muito guerreira, passaram necessidade, a mãe sofreu violência doméstica. Engravidou com 15 anos, foi mãe solteira sendo a filha criada pela avó. Com 18 anos já era mãe de 3 filhos. Uma paixão de quando tinha 11 anos é reencontrada aos 19. Casaram-se, e estão juntos há 22 anos. Perdeu 2 irmãos de uma forma horrível, difícil saber como ela suportou a emoção por que ela viu tudo, não é Patrícia? Faz rodas de conversa e conta a história dos irmãos. Aprendeu que precisamos amar as pessoas agora e não só depois que perdemos. Ela diz que chorar depois de morto, não adianta. Ela tem razão.
A Gabriela compartilhou conosco a pulseirinha da filha. Aquelas que usam na maternidade. A Gabi não queria ter filhos e a gravidez a fez sofrer os 9 meses. Fez pré-natal forçado. Deu tudo errado: pressão alta, diabetes, até um pé quebrado. Na semana do parto era só angústia. Na hora que a bolsa estourou a dor era tanta que ela pensou que fosse morrer. Estava difícil até ser simpática com o pessoal do hospital onde sua tia trabalhava há mais de 20 anos. Ao contrário do que pensava, o parto foi suuuuper rápido e tranquilo e a filha dela passou a ser a pessoa mais importante da sua vida. Quer mais um filho Gabi?
As amigas da Elizete com 10/11 anos saiam para as festas e a mãe da Elizeth não deixava ela sair (todas nós já passamos por isso não é?). As amigas diziam que era para ela fugir. Um belo dia saiu e chegou depois do horário combinado, é claro que apanhou, então resolveu fugir dizendo que ia pra catequese. Foi pra casa de uma amiga que tinha 19 anos e foram a uma festa. Por volta da meia-noite sentiu sono, mas a amiga disse que elas teriam que amanhecer o dia. Com fome, olhava só a amiga se divertir, e ela cada vez com mais fome. Passaram o domingo todo num banho e a noite foram pra festa de novo. O irmão descobriu onde ela estava e foi buscá-la na festa. Vocês pensam que ela ficou triste? Não, não, ela ficou foi alegre, mesmo apanhando do irmão. Ela queria era ir pra casa, pois ainda estava com fome. Chegando a casa, a mãe muito preocupada, só queria abraçá-la e ela com vontade de comer até as panelas. Nunca mais fugiu de novo.
A Amaríades fala de um “amor de paixão”. Amaríades vem do verbo amar. O pai queria que ela fosse médica e a mãe, Assistente Social. Viveu em um tempo muito politizado. Se fizesse medicina, não conseguiria transformar a vida do ser humano, não conseguiria empoderá-lo. Fez vestibular para Serviço Social. O pai entendeu. Viu Paulo Freire vivo, viveu uma época de reivindicações e conquistas, o ser humano não como um coitado, mas como protagonista. Depois de formada estava vivendo uma grande paixão e foi para São Paulo. Vivia um amor extremo, inteiramente feliz, mas a gravidez não vinha. Saiu de férias e foi para Santa Catarina. No café da manhã comeu melancia e o enjôo veio. Voltou para Manaus grávida, mas não encontrou quem fizesse o parto de cócoras, Sara nasceu de cesariana. Ela achava que era um menino – seria o Ícaro. Com o nascimento da Sara ela entendeu o que é amor verdadeiro. A sogra morreu e o marido se entregou ao alcoolismo, perdendo a fé em Deus. Amaríades engravidou novamente e nasceu a Sofia para resgatar o pai da depressão. Sofia fez o pai voltar a sorrir, veio para colocar ordem na vida deles. Hoje Sara tem 20 anos e a Sofia tem 8.
A Maria de Jesus é a 10.ª de 18 irmãos. Teve uma infância maravilhosa e hoje tem 3 filhos. Dormia e acordava vendo o pai na máquina de costura. O pai era alfaiate e funcionário público. Nunca gostou de boneca. Queria bola, carrinho, barra bandeira. Queria brincar na rua e por isso foi amarrada na mesa certa vez (ainda bem que naquela época não existia Conselho Tutelar). Nunca soube o que é desamor, a família sempre foi muito unida. Há 25 anos o pai da Maria de Jesus se foi, mas deixou um ensinamento: a educação deve estar acima de tudo.
A Maria Themoteo não quis falar na frente de todo mundo, mas depois me entregou um pedaço de papel onde conta a história de um galo de louça. Ela ganhou em uma barraca de jogo de argolas em um arraial, logo depois de conhecer o pai dos filhos dela. É aquela brincadeira que você tem que jogar a argola e ela tem que cair no objeto e ela conseguiu ganhar o galo. Hoje ela tem 5 filhos, já separou do marido, mas o galo de louça continua com ela há 33 anos, inteirinho.
E a Tenda do Conto é assim
Histórias de vida, histórias vividas, histórias sentidas, histórias pra todos, histórias pra um, histórias pra qualquer um.
Histórias alegres, histórias tristes, histórias de hoje, de ontem e de amanhã. Histórias de vida, histórias de morte, histórias de sim e histórias de não.
A minha história se mistura com a sua história e se transforma numa história que é de todos nós.
                                          Texto de Ana Lúcia Raman.