Roda de conversa sobre Dispositivos Grupais na PUC de São Paulo

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Grupos

A amiga me chama para conversar com seus alunos sobre grupos. Reconheço em seu pedido uma certa “política da amizade”. Ela fala do lugar desta política, onde o que se busca é uma espécie de associação, um agenciamento potente de pessoas e idéias para a disseminação de um ethos da clínica e, por que não dizer, da vida.

Uma atitude para com a clínica que produziu um modo de fazer no qual apostamos juntas. Uma comunidade no sentido mais forte daquilo que queremos passar àqueles que começam a sua caminhada pelas práticas psi. Portanto, não é de qualquer lugar que sou convidada a falar. O convite parte de uma produção coletiva de desejo que vem se dando há muitos anos e se compõe de muitas parcerias teórico-afectivas.

Aprendi com Cristina que tomamos uma posição em relação ao mundo e a nós mesmos quando nos propomos a seguir certos caminhos e não outros no trato com a clínica. Atitude clínico-política, dizemos, inspiradas e apoiadas em nossos parceiros de todas as horas. Mariângela é também um desses elos imprescindíveis.

Falar…narrar…isso nos leva também a escolher, além do lugar, uma certa “política da narratividade”. Modo de fazer e modo de dizer são fundamentais.

Como, então, falar de grupos? O que dizer de um objeto tão complexo? Dizer o que são me parece uma tarefa impossível. Vocês já conhecem, pela própria formação deste núcleo, a torre de Babel que se formou em torno do tema. A variedade de definições, enfoques, enfim, muitas políticas de narratividade se constituíram ao longo da história dos grupos, tanto no campo sociológico como em nosso campo psi.

Pois bem: vamos conversar sobre um modo de pensar e trabalhar com grupos. Sabemos, nós duas e tantos outros, se tratar de um modo potente. É o modo que o toma como um
dispositivo ( Deleuze ).

O que é um dispositivo e porque pensar os grupos desta forma aparentemente tão pragmática?
Um dispositivo é algo que: dispõe para, produz um efeito, fomenta uma ação, faz um movimento, um agenciamento.

Assim, guiados por outra parceira que nos agencia com um livro-ferramenta, “o campo grupal” de Ana María Fernándes, pensamos os grupos como “espaços táticos”.

A escolha desta posição narrativa se faz a partir da necessidade de enfrentar o que se coloca hoje como desafio para os trabalhadores da subjetividade, na formulação de Guattari. Segundo este autor, nunca fomos tão convocados como vetores centrais para o enfrentamento dos modos de subjetivação contemporâneos.

Que subjetivações são essas e com que forças podemos nos agenciar para responder/ atuar sobre esta realidade?

A economia capitalista nunca esteve tão presente no coração e na intimidade das pessoas como em nossos tempos atuais. Por outro lado, ou no mesmo movimento, o que move a economia são as forças “imateriais” – o chamado trabalho imaterial – , compostas pelas dimensões subjetivas, criativas, mentais, embora o trabalho material, a produção de objetos, continue vivo.

Akseli Virtanen, economista finlandês que proferiu recentemente palestras na PUC pelo Núcleo de Subjetividade, nos chama a atenção para esse novo lugar da produção: “ocorre na cabeça, na comunicação ou cooperação entre cérebros ( … ) razão pela qual fazer dinheiro, hoje em dia, tem muito mais a ver com a produção de mundos do que com a produção de bens materiais.”

O capital mais importante hoje é o intelectual. E se é assim, os controles da produção não mais se farão predominantemente sobre os corpos dos trabalhadores e sim sobre seus desejos, aspirações e relações. “Essa transferência dos mecanismos de produção de valor para a esfera do ambiente mental é muito mais importante para a análise de nossa psique do que as relações com a mãe ou a família”. Virtanen cita o “Anti- Édipo” de Deleuze – Guattari: “o desejo é social, o capitalismo trata da apropriação desejante”.

E que relações são produzidas num contexto de exploração contínua de mentes e relações?

“Vivemos hoje uma experiência caracterizada pela falta de solidariedade, luta de uns contra os outros, somos movidos por motivações individualistas. Não cremos mais nas possibilidades do mundo. Trata-se de uma era das paixões tristes. Os jovens dos subúrbios não vêem mais o futuro como possibilidade, mas como ameaça. É como se a esfera do possível estivesse exaurida. Tudo é imediato. E é porisso que nos sentimos tão impotentes”, continua Virtanen.

Quais são os estados mentais típicos desta experiência de mundo?
“- cinismo
– uso das pessoas como parte de um jogo, o seu jogo.
– não se vê sentido em em tentar algo novo, porque vai naufragar… diz-se “sei onde vai dar…”
– oportunismo: usar tudo ao seu alcance para obter vantagens
– ansiedade, inquietude, ascetismo
– há milhares de janelas no mundo, a presença simultânea de tudo, mas um desconhecimento de que caminho seguir. Permanecemos no nível das possibilidades, mas fora da esfera de ação…Daí a impotência.
– figura da depressão: tédio total e completo, nada no mundo é interessante, “já vi, já fiz, já passei por isto…”
– todas as razões são arbitrárias”

Akseli traz o exemplo de um amigo em depressão, que lhe devolve um olhar gélido em resposta ao seu oferecimento de afeto.

Vivemos num estado permanente de excitação em decorrência de não haver mais uma separação entre vida e trabalho. Há uma saturação de nossa atenção “full time”. O chamado pânico, ou a síndrome do pânico nada mais é do que uma resposta de nossos “corpos que não agüentam mais”. Tocar o limite nos leva a uma experiência física de perda do controle do corpo: dificuldades para respirar e desmaios iminentes, nas palavras de nossos pacientes, crianças, adolescentes e adultos.

“A depressão tem sido relacionada à distancia muito grande dos sentidos que guiavam os comportamentos. Os hábitos já não nos guiam. É o reino do “just do it” – simplesmente faça! Um grau zero de troca entre o sujeito e o mundo.”

Paradoxos: uma vivência de atravessamentos intensos de corpos e mentes e, ao mesmo tempo, zero de troca entre sujeitos e mundo dos sentidos. O exílio interior se instala como suposta proteção. Ou caminhamos para identidades de espessuras laminares, vazias.

Laços, redes, afetos, contágio pelo outro, encontros.

Parece-nos que a resistência a esse estado de coisas se dá  justamente na criação ou invenção do avesso daquilo que o produz. O avesso do exílio pode ser o encontro, lugar onde podemos nos instalar, aumentando nossas potências vitais. Pois um desses lugares é, sem dúvida, o ato de grupalizar. Esta nossa experimentação em roda de conversa é um bom exemplo disso.

Uma experiência na clínica de psiquiatria e psicologia da infância e adolescência do Hospital do Servidor Público Municipal

O HSPM é uma autarquia da prefeitura de São Paulo. Trata-se de um hospital geral, com diversas especialidades, localizado na região central da cidade que, pela especificidade de sua clientela ( funcionários e seus dependentes ), não se restringe a um território. Esta condição produz um funcionamento não regionalizado, o que traz ganhos e perdas em termos do trabalho. Atendemos pessoas de todas as áreas da cidade e perdemos com isso a possibilidade de parcerias mais próximas com outros equipamentos de cuidado e assistência à infância. Por outro lado, abre-se um campo de contato com uma grande diversidade de modos de vida.

O ingresso na clínica é feito por intermédio do acolhimento no pronto-atendimento. Este dispositivo funciona de forma a triar a demanda conforme as possibilidades do serviço.

As queixas escolares formam uma parte significativa dos pedidos que nos chegam e vêm aumentando como efeito do processo de medicalização que se apropriou dos modos de viver contemporâneos. Processo que reverbera por todas as manifestações comportamentais de crianças, adolescentes e adultos. O que dizer do aumento galopante de transtornos de todos os tipos e espécies? Um artigo recente da “Época” contabilizou dois milhões de autistas no Brasil. Uma criança em vinte e cinco, proporção de epidemia. Tais rotulações medicalizantes não resistem entretanto a uma análise mais rigorosa e crítica dos critérios pelos quais foram estabelecidas. Tarefa epistemológica, mas também – e principalmente – tarefa clínico – política.

Como proceder então quando nos deparamos com a necessidade de cuidar e, ao mesmo tempo com a injunção social de enquadrar, delimitar e gerir os comportamentos? Diagnosticá-los como sintomas de “novas doenças” pode se mostrar um “cuidado” apressado que leva, paradoxalmente, ao descuido e ao destrato das questões trazidas por quem nos procura. E à solidão do exílio sob a forma de uma subjetivação doente.

Colocamos em ação um primeiro dispositivo grupal a partir do que detectamos no pronto – atendimento como um problema a ser construído conjuntamente: o psicólogo e  a família problematizam aquilo que chega como “queixa”.
Pensamos que esta análise pode e deve ser feita junto com as crianças e adolescentes desde os primeiros encontros. Eles são os principais interessados em compreender os motivos de seus encaminhamentos aos serviços e, na maior parte das vezes, os últimos a serem ouvidos. Embora cheguem por iniciativa dos adultos, na condição de objetos passivos de observações destes, sempre terão a sua versão sobre o que lhes acontece e nos ajudam a compreender o que acontece com os adultos também.

Muitas vezes a simples desmontagem da narrativa que se criou em torno destas “realidades” é acionada já nos primeiros encontros, reconfigurando as questões iniciais. Este modo de fazer busca uma devolução do produto – sintomas, estados, comportamentos – ao seu processo de produção, o que nos leva invariavelmente a incluir um plano mais ampliado onde se constituiu aquela forma. Clínica ampliada, dizemos, no sentido de incluir e “engordar” o entendimento e a intervenção.

Depois do PA com o grupo família, se não houver alta, pais e crianças serão convidados para participar de um grupo, geralmente composto de oito encontros semanais, com a duração de uma hora e meia em média.

Os grupos de crianças são feitos por um profissional e os de pais por outro: “quartos separados” foi a expressão surgida de um lapso de uma das psicólogas, tornando-se parte da cultura da equipe.

O que nos traz a lembrança de um conceito-ferramenta de Ferenczi, a “confusão de línguas” entre adultos e crianças. Ferenczi nos mostrou como se cria uma relação de “hipercomunicação” na relação pais/filhos, educadores/alunos, com a conseqüente produção subjetiva que se alimenta de mensagens ou subtextos que codificam e/ou submetem os pequenos ao pensamento dos adultos. Os temas e modos de dizer dos adultos nas primeiras abordagens das entrevistas iniciais – “ele é agitado, hiperativo, fala mais que a boca!”, “ela é desligada, não aprende, não escuta, não para!”, outro é “opositor, desrespeitador das regras, diz tudo o que pensa” – carregam sentidos nos quais elas podem ficar capturadas. Sem voz e sem lugar, as crianças podem ficar também sem história quando se naturalizam as queixas em frases como “sempre foi assim!” O grupo de crianças/ adolescentes põe em cena as palavras e o jogo de corpo que vai retirando-os dessa condição.

“Quartos separados” pode funcionar como dispositivo que age separando as línguas dos adultos – registro da paixão – da língua dos jovens e crianças – registro da ternura. Desmontagem da confusão de línguas.

O dispositivo grupal também é ferramenta estratégica de trabalho contra o isolamento a que ficam submetidos todos, promovendo o compartilhamento do sofrimento e da construção de saídas a serem experimentadas. Estar com outros pais potencializa as trocas e conexões com outros modos de viver os conflitos existenciais. O mesmo vale para crianças e jovens.

A prática de aplicação de testes foi sendo gradativamente substituída pela interação lúdica grupal, com a produção de desenhos e escuta como meios que consideramos mais adequados e respeitosos no acesso ao mundo da infância. Considero a situação de testagem uma espécie de confusão de línguas, onde as singularidades são codificadas em nome de um ideal perverso de norma que deve valer para todos. Vemos cotidianamente no funcionamento grupal crianças que, se testadas pelos instrumentos padronizados, obteriam escores baixos, mas que revelam em outros contextos toda a sua vivacidade e inteligência. Escores desconsideram fatores culturais e modos de vida.

E, por fim, arrematamos o que foi processado nos respectivos grupos de crianças e de pais num encontro coletivo. Nossa experiência mostra que o conceito de encontro, criado por Spinoza, é um vetor que produz uma atmosfera de potência terapêutica dos grupos. A vivência singular de cada agrupamento constrói uma pequena história coletiva e de implicação com o outro que potencializa afetos e perceptos sobre a vida. São zonas de experimentação de um comum e, ao mesmo tempo, de encontro com diferenças que podem ser acolhidas e incorporadas.

Michel Foucault uma vez falou: “a partir e por meio de nossos desejos, podemos estabelecer novas modalidades de relações, novas modalidades amorosas e novas formas de criação “ ( frase postada em “sabiduría de Foucault” no facebook ).

Virtanen, numa associação minha com uma fala de sua conferência, chamaria o encontro de “a impossibilidade de não amar”.

 

Maria Luiza Carrilho Sardenberg