Fabricação de doenças

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Querida Iza, nossos diálogos me estimulam e animam a continuar praticando o pensamento e pensando a prática.

Ao buscarmos soluções para sofrimentos fabricados, ou rótulos novos para sofrimentos imemoriais, podemos estar simplesmente capitulando. Assim, seria como se a vida não pudesse ser equacionada, pois uma constante universal, semelhante a da gravidade, estaria sempre, não importa em qual sociedade, provendo uma equidade ou equilíbrio de desespero e angústia da qual não podemos nos eximir. 

Desejar a próporia opresão é como evadir-se de responder ao tempo da existência com paciência e tolerância. Mais efetivamente, a pressa é uma fuga do tempo e portanto, da existência. Inadvertidamente se foge do sofrimento, sem se dar conta de que, assim, se evita o sofredor. Confundimos facilmente o ser e o sintoma. As vezes, mais tragicamente, fundimos os dois em uma unidade em que ser e sofrimento são uma só coisa.

Isto inclui as crianças, dos outros e as nossas. Um racionalismo perverso que reivindica um construcionismo absoluto. E a superação de qualquer contingência, seja o desemprego, a separação de um casal, tudo pode ser vivenciado sem dor. Se a dor vem, damos, buscamos ou exigimos um remédio, afinal não sentir profundamente parece ser um direito de todos.

Nestes sofrimentos modernos em que não está em questão a sobrevivência imediata, mas sim modos e formas adequadas, confortáveis de evitar o incomodo causado pela relação com o outro fora do esquema divino ou da contingência, tudo é urgente.

Para quem já passou fome em uma família numerosa ver pais e mães desesperadas com o comportamento de um ou dois adolescentes em um cotidiano de classe média parece frescura. Mas a infelicidade se infiltra pelos cantos da vida hiper-confortável e para cada solução há um novo incômodo inerente.

As férias escolares, decorrentes da existência de escolas e rotinas de atenção às crianças para além do núcleo familiar, aparecem como meses de torturas em que os pais alegam não saber o que fazer com os filhos. Um absurdo, pois estar com os filhos implica em desconfortos, movimentos e repetições contínuas. Educar também é isso.

Criamos, conquistamos um Estado de bem estar social onde temos acessos a inúmeras formas de sociabilidade. Porém, e curiosamente, nos angústiamos com o mundo da mesma forma que os caçadores coletores, provavelmente, lamentavam a contingência.

Assistimos a uma lamúria constante na mídia que transforma o cotidiano em um horror. Exatamente como ou similar ao terrível fato de nos tempos antigos os humanos viverem em abrigos precários e estarem expostos ao perigo dos predadores e da fome.

Além dissso, é comum vermos as pessoas se queixando do comportamento da maioria dos seus semelhantes. Avaliando os confortos indignos, mas sedutores, de ser como todos – basicamente equivocados e incompetentes. Ao passo em que lamentam os custos de serem corretos. Uma série de premissas como essas, em que é comum julgar-se bom em um mundo de errados e bem sucedidos, impacta diretamente as nosssas crianças.

Tudo que há deve ser corrigido, pois separa-se de mim pelo erro. Sentamos em frente a TV e espiamos o mundo. Ao lado das crianças falamos que tudo está errado e que se fosse como desejamos, como fazemos, ao custo de nossa felicidade, o mundo seria melhor.

Imagino o tipo de confusão em que atiramos nossos filhos ao julgarmos tudo e todos desta forma. Pois se as crianças aceitarem que tudo está errado, que seus pais tentam ou desistiram de agir corretamente porque isto é improdutivo em termos de custo benefício, como elas reagirão ao e no mundo real.

Desta forma parece que nosso tempo é marcado pela busca de remédios, remendos e concertos. Para tudo, parece haver uma solução negligenciada e óbvia. Daí, dá-lhe pílulas e comprimidos. Substâncias mágicas em que o óbvio está concentrado e a solução (soro) cura rapidamente.

Que tal uma outra premissa? A de que somos como todos os demais humanos. E não muito diferentes dos demais animais. Como seria diminuirmos as diferenças para o nível das contingências em que cada um é atirado pela vida?

Que de resto, somos humanos, ligados pela solidariedade e pela tolerância e não separados pelas receitas, bulas e figurinos, certos ou errados.

Em algumas tradições a separação é o sinônimo do erro e o bem um outro nome para a unidade. Nelas a diversidade é efeito dos modos e não das "essências". A riqueza da diversidade pode ser permitir a alteridade sem nos privar da unidade.

Um beijo!