Da Política de Qualificação das Maternidades à Rede Cegonha

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"A partir de hoje 
 A família se transforme 
E o pai 
Seja pelo menos o Universo 
E a mãe 
Seja no mínimo a Terra 
A Terra 

(“o amor”, Caetano Veloso baseado no poema de Vladimir Maiakoviski)
 
É um desafio fantástico qualificar a atenção à mães e recém-nascidos no Brasil, agora assumido pela rede cegonha, antiga política de qualificação das maternidades (PQM) da PNH. São várias e poderosas as forças que alimentam as dificuldades da qualificação da rede perinatal. O aumento e a melhoria no acesso a tecnologias e serviços nos últimos anos não repercutiu proporcionalmente na qualidade da atenção. É necessário transformar práticas profissionais equivocadas e que foram instituídas em um contexto de forte submissão da mulher ao saber da biomedicina. Embora sem evidências favoráveis ou com evidências francamente contrárias, práticas como episiotomia de rotina, tricotomia, lavagem intestinal, abuso de ocitocina, restrição de movimentação da gestante, restrição indevida de alimentação, parto horizontal, impedimento da participação do pai durante o parto, entre outras, ainda são dominantes em serviços públicos e privados. Sem falar das violências diretas sofridas por uma em cada quatro mulheres[1].
Por outro lado este embate, apesar de repercutir negativamente na mortalidade e na humanização da atenção, foi parcialmente naturalizado por uma parte da sociedade, que acredita que o parto cirúrgico é o melhor. O fetiche da tecnologia interdita a crítica ao seu uso inadequado,como se ela pudesse ser avaliada por si, e não pelo seu uso ou resultado. Uma cesárea bem indicada é maravilhosa e salva duas vidas.Uma cesárea mal indicada é apenas um crime de abrir a barriga de alguém indevidamente. Para os médicos o parto cirúgico economiza tempo (e dinheiro),impõe uma relação de controle absoluto sobre a mulher e evita o contato com toda a intensidade do parto. Em um contexto cultural que ainda separa o parto da sexualidade (o sexo é pecado e o parto é “santificado”, o que significa dizer martirizante), este modelo obstétrico,embora iatrogênico, é perfeito, pois industrializa a atenção ao parto de tal forma que ele não possa ter outro sentido senão a “procriação”. O medo / risco torna-se quase o único tema a ser tratado entre profissionais e gestantes / familiares. Na gestante procura-se e produz-se ativamente a impotência. É uma situação em que o conhecimento “técnico” está misturado com as relações de gênero e sexualidade, imbricado com o modelo gerencial taylorista, imbricado com interesses corporativos e do complexo médico industrial. É só? Não. Existe toda a interdependência da rede assistencial. A maternidade depende do pré-natal da Atenção Primária, que depende de laboratórios e de retaguarda especializada. A rede precisa ser articulada regionalmente e toda ela precisa mudar minimamente as práticas e as relações clínicas. O pré-natal precisa qualificar-se para tratar e diagnosticar patologias, mas precisa na mesma medida saber reconhecer na gestação outras dimensões além do risco. Saber conversar e apoiar a família neste momento potencialmente intenso.
                Para enfrentar um desafio deste tamanho foi formulada uma política de apoio inovadora e criativa, inicialmente chamada de política de qualificação das maternidades (PQM) e agora, turbinada com mais recursos, é chamada de Rede Cegonha.Trata-se de uma estratégia inovadora porque inclui na função do apoiador do ministério da saúde a (1) articulação política das Câmaras Técnicas de Humanização da Saúde Perinatal regionais, que deve contar com a participação dos gestores implicados, dos serviços estratégicos e com a presença de outras forças organizadas da sociedade, que queiram contribuir com os desafios (corporações profissionais, movimentos da sociedade civil ligados ao tema, ministério público etc). A idéia é abrir a roda, arejar o SUS e aumentar a capacidade de compreensão dos problemas da atenção perinatal para contratar soluções entre os gestores, a sociedade e os serviços de saúde. É também, a partir de um tema sensível à sociedade de experimentar e construir a regionalização. Além disto, a proposta inclui (2) uma dimensão  técnico-política de apoio ao cotidiano dos serviços estratégicos. Assim, o “apoio é um modo de fazer baseado na interação e na troca, permitindo por em discussão modos de funcionamento dos grupos/equipes e da organização. Pôr em questão exige que se enfrente temas temidos, pactos não explícitos, mal-estares que se produzem nas relações de trabalho”. Esta dimensão já havia sido bem desenvolvida pela Política Nacional de Humanização (PNH) e busca mudar as práticas e colocar em análise as relações de poder e saber. O apoiador leva propostas concretas como o Centro de Parto Normal, onde a preferência é para o parto realizado com a enfermeira obstetriz (tal como é feito nos países com melhor qualidade de atenção ao parto). Propostas de co-gestão, acolhimento com classificação de risco, direito a acompanhante, indicadores de avaliação e monitoramento, apoio matricial à rede assistencial (vinculação da gestante), abordagem dos padrões afetivos dominantes na relação entre profissionais e destes com as gestantes, etc. Por exemplo, o elementar direito ao acompanhante pode suscitar, no início, reações intensas e apaixonadas nos profissionais. A presença masculina na cena do parto ou enfermaria instiga reações como: “os homens precisam ser treinados para isto”. “Eles vão ver as outras mulheres. Isto não pode”. “Eles vão aproveitar que há outras mulheres na enfermaria ou no hospital e namorar com elas”. Os homens na cena do parto parecem tornar mais difícil para os trabalhadores esconder a relação entre parto e sexualidade. O individual / pessoal e o coletivo estão mais explicitamente misturados na cena do parto. A cidadania, a autonomia, os papeis profissionais, os papéis sociais, o tipo de vínculo terapêutico e os saberes estão em (re) construção. É um convite a um rico processo de transformação institucional e social. Outros contratos entre maternidades e rede assistencial, entre profissionais e usuários vão sendo engendrados. Quem sabe outras famílias, outras mães e outros pais. Qual será o impacto que uma rede perinatal que aposta na vida poderá lograr o progressivo isolamento e acúmulo de funções das mulher no cuidado dos filhos e sustentação econômica da casa? Não sabemos. Mas “apenas” não ser cúmplice deste processo e trazer à cena do parto as pessoas escolhidas pela gestante, para participar deste momento vital não será certamente pouca coisa. É uma luta renhida, corpo a corpo contra as misérias do cotidiano.
                O terceiro componente do apoio na rede cegonha é o embate técnico a partir de um serviço de referência. O Hospital Sofia Feldman, um dos centros colaboradores do Plano de qualificação das maternidades da região Norte e Nordeste, tanto recebe profissionais para vivências instrutivas em um outro paradigma de atenção e gestão mini-estágios), como faz cursos em que debate as evidências das práticas instituídas no serviço e atua no mesmo serviço, para experimentar junto com os trabalhadores o exercício de uma outra prática, naquele contexto específico. Esta práxis contribui com as trasnformações porque muitas vezes os profissionais argumentam que as propostas da Rede Cegonha só são possíveis em “outros” contextos. O impacto do Sofia Feldmam nos profissionais que o visitam é enorme. A Rede Cegonha consegue assim encantar e ensinar. Esta composição de estratégias – política regional, apoio direto e “sedução técnica” de um serviço modelo – dá condições de enfrentamento real para problemas complexos. Permite que os financiamentos que chegarem, estejam relacionados a mudanças nas práticas clínicas e gerenciais, fundamentais tanto para enfrentar a mortalidade, quanto para enfrentar a inaceitável rotina de violência e iatrogenia a que são submetidas as mulheres e os recém nascidos. Por último, (4) foi desenvolvido um sistema de monitoramento do trabalho do apoiador, a partir das contribuições do Serafim, que permite tanto orientar o trabalho dos apoiadores, a partir das principais diretrizes, como efetivamente acompanhar este trabalho.
                Este tipo de estratégia de apoio, ou esta concepção de apoio poderia ser desenvolvida em outras áreas do SUS. Precisamos chamar à responsabilidade na construção e qualificação da rede assistencial, o SUS que dá certo. Colocar estes serviços em conexão, colaborando com os apoiadores da gestão,com apoiadores matriciais do NASF,em todos os níveis do SUS (quantas equipes de atenção básica, de ambulatórios ou hospitais não poderiam receber trabalhadores e visitar outros serviços?). Também precisamos instituir um tipo de apoio que possa estar junto aos serviços: planejando, debatendo e experimentando novos arranjos e dispositivos para qualificar a atenção e a gestão. E precisamos, ao máximo possível, instituir a liberação de recursos de investimento do SUS às mudanças nas práticas clínicas e gerenciais. Já é suficiente na história do SUS investimentos com impactos minúsculos,reféns do fetiche tecnológico ou da crença na suficiência das paredes de concreto. Cada compra de equipamento, cada reforma, cada construção de serviço, precisa estar dentro um projeto regional e de um processo de transformação e qualificação das práticas clínicas. É importante diferenciar estas novas possibilidades de co-gestão e apoio,com propostas neotayloristas,que buscam sobretudo reduzir os trabalhadores de saúde à zumbis, em busca de metas e indicadores, com baixa capacidade de decisão e análise, diminuindo as possibilidades de construção de organizações mais democráticas e qualificadas.
                Gustavo Tenório Cunha
                Médico, pesquisador do DMPS-UNICAMP
 



[1] “Em resposta a diferentes formas de violência institucional, no entanto, uma em cada quatro (25%) relatou ter sofrido, na hora do parto, ao menos uma entre 10 modalidades de violência sugeridas – com destaque para exame de toque doloroso (10%), negativa para alívio da dor (10%), não explicação para procedimentos adotados (9%), gritos de profissionais ao ser atendida (9%), negativa de atendimento (8%) e xingamentos ou humilhações (7%)” Fundação Perseu Abramo