Atenção Básica

2 votos

 O intenso debate que se seguiu ao longo das décadas de 1970 e 1980 levou a um reforço considerável do papel da organização dos sistemas de saúde no mundo. A recessão mundial e suas consequências conduziram diversos países a reorientar seus investimentos públicos em áreas chamadas de sociais (educação, saúde, segurança, etc) segundo a emergente Cartilha Neoliberal. Cortes de investimentos, reorientação do financiamento público, novas formas de se pensar e agir foram implantadas como salvação para as dificuldades que se impunham aquela época.

Apesar da forte pressão que o setor econômico sobre o Estado na busca por melhores condições de produtividade e, portanto, de obtenção de lucro, as reformas não aconteceram sem que houvesse resistência. Assim, no campo da Saúde Pública, tornou-se imperativo que um conceito que a muito vinha sendo utilizado sem que uma definição clara lhe fosse dada, emergisse do campo dos conceitos-sintomas para uma forma de conceito-chave: a Atenção Primária a Saúde.
Apresentada pela primeira na Grã-Bretanha, no ano de 1922, pelo Serviço Nacional de Saúde, a Atenção Primária a Saúde se propunha a ser uma forma de organizar o embrião de um sistema de saúde (que se tornaria universal no ano 1946) em três níveis de atenção: Primário, Secundária e Terciário. O nível primário serviria de porta de entrada para a população ao sistema de saúde e seria uma projeto diretor da alocação de recursos deste mesmo sistema. Explicando melhor: por estar descentralizado, regionalizado e em contato frequente com a população, tal nível de atenção seria capaz de avaliar as necessidades de sua área física de ação e alimentar com dados e novas formas de trabalho todo o sistema.
Tal idéia não é fruto de geração espontânea como talvez o texto tenha dado a entender. Ao longo dos séculos XVIII e XIX as revoluções industrias geraram uma carga imensa de tensão social em função da grande exploração que os trabalhadores em alvo naquele tempo. Crianças, gestantes e pessoas com todo tipo de agravo em saúde eram colocadas na linha de produção nas piores condições possíveis em cargas horárias de até 16h.
Se somarmos a isto o fato de que os avanços não foram apenas técnicos mas também na percepção do mundo, veremos que duas ideologias conflitantes entraram em ação àquela tempo como subsídio teórico as discussões no campo da saúde: o Liberalismo e o Socialismo.
 

Karl Marx a Esquerda e Adam Smith a Direita

 

O Liberalismo utilizaria de uma lógica de processo Saúde/Doença conhecida como Higienismo (muito em voga na Grã-Bretanha, EUA e Canada no século XIX e começo do século XX). Por entender a todos como iguais em possibilidades (e supostamente livres para fazer o uso que melhor de aprouver destas) não é de se estranhar que todas as suas análises refletissem esse paradigma. Ao colocar o indivíduo como responsável total pela sua saúde e pelos seus agravos, o Higienismo permitia que o cuidado com a população fosse de responsabilidade dela própria. Se o indivíduo adoecia era por falta de educação. Se não tinha educação era por falta de esforço seu ou dos seus familiares. Se não tinha dinheiro de reserva para o caso de adoecimento isso se dava por constatações as mais absurdas, como a de um lapso moral…Becquerel, em 1883, entenderia a Higiene como o ato de conversar a vida. Claro que, de responsabilidade única e exclusiva do próprio detentor dela.  
 

 

 

A percepção Socialista colocava via a saúde, seu a acesso a ela ou mesmo seu restabelecimento como sendo diretamente ligado ao papel que cada um ocupava dentro da cadeia produtiva. Não era portanto uma suposta ignorância intrísica do ser humano ou preguiça que determinavam em última análise a sua história da saúde. Era o fato de ter ou não a posse dos meios de produção. Assim não seria reorganização de sistemas de saúde ou simplesmente da prática clínica que alteraria o acesso da população a saúde. A tomada dos meios de produção e a sua então socialização alteraria dramaticamente a vida da imensa maioria da população. Vale aqui ressaltar que a crítica ao Capitalismo, ancorada principalmente na lógica do lucro em primeiro lugar, também teria papel importante. Afinal era essa busca se medidas pelo lucro que piorava/piora enormemente a vida da população gerando toda sorte de violência, doença, etc…
O Higienismo (Liberalismo)se converteria em Medicina Preventiva no século XX e em contraposição surgiria a Medicina Social. (Socialismo).

Não é de se estranhar portanto que, no epicentro do capitalismo mundial tal embate ideológico se tornasse tão drámatico na Inglaterra do começo do século XX. A reestruturação dos serviços de saúde e a construção da Atenção Primária a Saúde ficariam sobe a lógica da Medicina Preventiva. Teoria ainda incipiente, carecia de melhor definição, mas já se propunha a orientar os serviços a diminuição dos agravos e saúde, prática orientada as necessidades da população, uso racional dos recursos e atenção orientada a comunidade.
Como já dito, em 1946, cerca de um ano após o final da Segunda Guerra Mundial o surgimento de um Sistema Universal de Saúde colocou em cheque o modelo de conciliação entre lucro e bem estar da população. Apesar da sociedade ter se mantido dentro da lógica capitalista entendeu-se ali que a vida, ou melhor, a sua qualidade, não poderia ser tratada como mercadoria. Ainda que existam imensas contradições entre a maneira como a sociedade se organiza e a sua atenção a saúde, o fato de ser um país central na economia mundial consegue minimizar e muito isto. Mas isso é uma discussão para outro momento.
Sistema de Saúde da Inglaterra. Note que Care foi traduzido como Atenção e não Cuidado.
37ª Conferência das Nações Unidas (1977), a 1ª Conferência Internacional de Saúde  e a Carta de Ottawa (1986) acabam reforçando a centralidade no nível primário. A pergunta que se deve fazer agora é: como toda uma estrutura de estado, ou até supranacional, decisivamente influênciada pela lógica do lucro poderia gestar e depois manter um serviço universal para a grande população, principalmente nos países subdesenvolvidos onde as condições de vida são as mais difíceis, sem gerar um grande conflito nacional?. A resposta é simples: não pode. 
 
Capa de uma Cartilha destinada a Atenção
Básica no Brasil
Como ficaria claro no Brasil a partir da Construção da Atenção Básica, a lógica aqui aplicada seria a sugerida pelo Banco Mundial. No artigo de Maria Lucia Frizzon Rizzotto O Banco Mundial e as Políticas de Saúde nos Anos 90(Destaque para  página 157),  Subfinanciado, com parcos recursos materiais e humanos, trabalhando dentro de forma precarizada e, em muitos caso, com formação precarizada. Construiria-se assim um sistema de saúde pobre para pobres. Com o ascenço da Saúde Suplementar e a incapacidade do SUS em prover serviços de mesma qualidade ou ainda de interferir no processo saúde doença da forma como se propõe por dificuldades estruturais (e não conjunturais) o primeiro nível de atendimento passa a carregar também a responsabilidade de ser um mini-hospital, tentando resolver com o mínimo de recursos o máximo de agravos.
O PCAS – Programa de Agentes Comunitários somado ao PSF – Programa Saúde da Família se tornariam paradigmas a ser seguidos. Considerados pelo Ministério da Saúde programas bem sucedidos, passam a integrar a ESF – Estratégia Saúde da Família.
Ainda que carregue as contradições do SUS, atualmente o PSF está em 94% dos municípios do Brasil contando com cerca de 23.710 equipes, com plano de ampliação para 32.000 equipes ao final do ano de 2010. 
Forte presença das OSS na gerência do setor, falta de plano de carreira para seus funcionários, baixíssima participação social nas decisões, absorção de profissionais não formados ou formados para outra lógica de trabalho, carga de trabalho exaustiva, baixo diálogo com o resto da rede e forte medicalização são, dentre outros, fatores determinantes para a baixa resolutividade do modelo. Resta lembrar que enquanto não se rompe com o ciclo vicioso no qual quem pode menos sofre mais e portanto passa a poder menos ainda não há reorganização de sistema de saúde ou investimento suficientemente grande para atuar na maior das fragilidades da nossa sociedade.